O Nietzsche dizia (ou dizia mais ou menos, pois cito de cor) que o homem que vive em função das suas raízes e da tradição transforma-se num caranguejo. Pelos vistos, não corremos esse risco em Portugal, pois estatísticas oficias recentes confirmam uma evolução de ruptura comportamental em relação ao passado.
Em primeiro lugar, vamos às notícias talvez mais conhecidas.
- Os casamentos deixaram de ser católicos (há 15 anos, só 35% dos casamentos eram não católicos – hoje, o valor é 65%).
- Os casamentos deixaram de acontecer, cada vez as pessoas se casam menos (em 15 anos, os casamentos caíram para metade).
Em segundo lugar, vejamos as notícias menos óbvias, ou mais curiosas.
- Sempre houve, desde o fim da Concordata, mais divórcios de casamentos católicos do que de casamentos civis. Dir-se-á: também há mais casados católicos do que casados no civil. É verdade. Mas o rácio entre os casamentos católicos e os civis tem vindo a diminuir intensamente (há 15 anos, era 184 – 184 casamentos católicos por cada 100 civis – e é hoje 56), quando o rácio dos divórcios se manteve.
- O número de filhos fora do casamento tem vindo a aumentar: eram 22% dos nascimentos há 15 anos e hoje já são metade.
- Cerca de 16% dos nascidos são filhos de pais que não só não são casados como nem sequer coabitam.
Muito bem. Chega de números, que fazem mal a certas almas mais sensíveis. Que podemos concluir daqui?
Tudo pode ser resumido numa alegoria: tenho a certeza de que o Nietzsche, se voltasse à Terra, ficaria muito feliz. Teria percebido que, afinal, a sua enorme e
maravilhosa solidão mental desapareceria 100 anos depois. Talvez nem tivesse enlouquecido.
De forma mais prosaica, diria que os portugueses compreenderam – pelo menos, até certo ponto – a necessidade de fazer triunfar o interior sobre o exterior. Por isso, todos estes números, frios na tradição da iletracia numérica (a iletracia é um neologismo da palavra portuguesa iletrismo), têm um significado quente, bastante profundo. Em duas dimensões igualmente importantes, na minha opinião.
Fazendo triunfar, como disse atrás, o interior sobre o exterior, ou seja, o individual sobre o colectivo, os portugueses homenagearam a primeira grande palavra humana: a liberdade. Libertaram-se da opressão do controlo social, da pressão das convenções e das tradições – que obrigavam as pessoas a casar e, normalmente, pela igreja – e ousaram pensar e decidir pela sua própria cabeça, não se ralando com o que os outros pensam, ou cochicham à soleira da porta.
Numa segunda dimensão, também homenagearam a segunda grande palavra humana: o amor. Libertaram-se da opressão dos casamentos de conveniência, ou de resignação, dominados por toda a espécie de utilitarismos, e, no caso das mulheres, por frequentes ditadores caseiros de pacotilha. E procuraram uniões mais livres, nas quais a permanência na relação é mais condicionada pelos laços apenas afectivos. Foi assim que resistiram à humilhação de permanecer em casamentos esvaziados de conteúdo emocional, recorrendo ao divórcio – mesmo infringindo as leis divinas – e procurando novos amores, novas sensações de plenitude em humanidade, através desse atributo que será, talvez, a maior das características do ser humano.
Vejo esta especificidade humana em dois planos. Por um lado – como referi na crónica de há duas semanas sobre os robots -, face à máquina: penso que as máquinas só se tornarão humanas no dia em que contrariarem a sua programação, por amor. Por outro lado, estou convencido de que o amor e a arte são a maior das negações do utilitarismo funcional, presente no reino animal. Só assim se compreende o “amor absurdo” dos homens, que tem frequentemente como destinatário o menos inteligente (menos “adaptado” na selecção animal), o menos belo, o menos forte, o com menos carácter, o menos preparado para uma vida de sucesso – tudo características de exclusão darwinista.