O rapaz nunca antes passara por aquela rua. O acaso o levara até ali. Avançara, atraído pelas ramagens frondosas de uma mangueira, que se inclinava, como uma matrona curiosa, sobre os altos muros de uma casa burguesa. Talvez tivesse mangas. Ele sabia como derrubar os frutos à pedrada. Um guarda, sentado à porta, adivinhou-lhe a fome. Enxotou-o, agitando contra ele o cabo de uma vassoura:
− Desaparece, vadio. Não queremos aqui gente da tua laia.
Ulisses correu. Após uma curva, a rua estreitava-se, galgava uma ladeira lamacenta, e perdia-se no labirinto laborioso de um musseque. Uma das últimas casas, antes da ladeira, distinguia-se de todas as outras pela ausência de muros. Aquilo que em tempos fora um jardim era agora um matagal bravio, que uma breve sebe de cedro separava do passeio. Um pequeno portão ferrugento, no mesmo tom azul delido das paredes da casa, convidava a entrar.
Ulisses retornou no dia seguinte, de manhã muito cedo. E dois dias depois, ao final da tarde. As janelas tinham as persianas cerradas. Não parecia estar ninguém. O rapaz lembrou-se dos conselhos de Elias Suégue: “Amadores tentam não ser vistos. Profissionais fazem o contrário. Você entra na casa como se fosse o dono. Tem de acreditar que é o dono.”
Certa tarde, enquanto tentava arrombar a porta de um Mercedes, usando apenas um fio de pesca, Elias foi interrompido por um sujeito gordo:
− O que está a fazer?!
− O carro é meu. − Disse o ladrão, endireitando a gravata. − Esqueci as chaves lá dentro.
− Não! O carro é meu!
Elias não se deixou intimidar:
− Tem a certeza? Qual a matrícula?
O gordo olhou-o, incrédulo. Depois, suando e bufando, deu a volta ao veículo. Elias colocou o chapéu de veludo, que havia pousado sobre o tejadilho do Mercedes, e atravessou a rua, fintando o trânsito com elegantes passadas de bailarino. Quando o gordo o procurou, já tinha desaparecido.
Ulisses assistira a tudo. Sorriu, lembrando a cena. Então, encheu o peito com o ar quente da tarde e saltou o portão, não furtivamente, antes como se fosse o dono da casa. Contornou o jardim. O quintal era fundo, com três mamoeiros, muito altos, irrompendo por entre o capinzal. Havia uma porta entreaberta. Entrou. Era uma cozinha. Um fogão velho. Pratos sujos empilhados no lava-loiças. O rapaz aguardou um instante, o ouvido atento. Finalmente, avançou por um pequeno corredor, até encontrar uma sala ampla, meio afundada na penumbra, com estantes cheias de livros. Percorreu a sala, assombrado. Um grosso volume, mesmo diante dele, chamou-lhe a atenção. Estendeu a mão e tirou-o:
− Esse não, filho. É melhor deixar o Ulisses para outra altura…
O rapaz permaneceu onde estava, paralisado de terror. Esperou a pancada. A bala. Nada aconteceu. Girou o pescoço e deu com o olhar trocista de um velho rasta, baixo, robusto, de longos dreads grisalhos, vestido apenas com umas bermudas azuis. O velho tirou outro livro da estante:
− Tenta antes este.
O rapaz leu o título em voz alta:
− As Minas de Salomão…
− É uma tradução do Eça de Queiroz. Vais gostar.
Indicou-lhe uma poltrona, junto a uma janela, e saiu da sala. Ulisses abriu o livro, a medo, e começou a ler. Quando era menino, o pai lia para ele. O pai, sentado na cama, lendo para ele, é a melhor lembrança que tem. Não apenas a melhor lembrança do pai. A melhor lembrança de toda a sua vida.
O pai era militar. Foi morto em combate apenas duas semanas antes do fim da guerra. A mãe começou a beber. Uma noite, disse-lhe:
− Não sei onde arrumar tanta dor.
Não voltou a falar. Ulisses abandonou a escola, e começou a passar cada vez mais tempo na rua. Foi por essa altura que conheceu Elias Suégue, seu professor na arte do pequeno furto. Agora está ali, sentado, lendo As Minas de Salomão, enquanto sente o peito se estreitando com saudades do pai. O velho reaparece. Traz-lhe uma sandes de presunto. Acende as luzes da sala e volta a sair sem dizer palavra.
É quase meia-noite quando o rapaz se levanta. Deixa o livro aberto sobre a poltrona, espreguiça-se e sai pela porta da cozinha. Salta o portão. Perde-se na noite. Regressa no dia seguinte, à mesma hora. O livro está onde o deixou. Senta-se e prossegue a leitura. Desta vez o velho traz-lhe, numa bandeja quadrada, um prato com arroz e feijão, e uma lata de Coca-Cola. Senta-se a vê-lo comer. Nenhum deles diz uma palavra.
Ulisses passa a ir todas as tardes, cada vez mais cedo, a casa do rastafari. Quando termina de ler As Minas de Salomão, o velho sugere-lhe outros romances: A Ilha do Tesouro, As Aventuras de Huckleberry Finn, O Conde de Monte Cristo. Jantam juntos. O velho, que se chama Alexandre Miguel, fala-lhe sobre a vida dos escritores cujas obras lhe deu a ler. Uma noite, na cozinha, enquanto lava os pratos, o rapaz detém-se. Diz:
− Não sei onde arrumar tanta dor.
Alexandre abraça-o. O jovem deixa-se abraçar. Decorrerão anos. Ulisses construirá uma vida. Um dia, um dos filhos fará a pergunta inevitável:
− Tantos livros, pai. Leste-os todos?
− Não. A maioria herdei do teu avô Alexandre. Mas mesmo sem os ter lido todos sei que cada um deles é uma casa para mim.
O menino guardará a frase do pai até um dia a compreender.
(Crónica publicada na VISÃO 1465 de 31 de março)