A minha avó foi escrava de Mutu-ya-Kevela”, disse Tarcísio, o proprietário do restaurante, no Bié, onde eu entrara apenas para refrescar a garganta. Calou-se e sorriu. Estava feliz com o meu espanto.
A avó de Tarcísio Felicidade, dona Isabel, saiu da Madeira para casar-se no planalto da Huíla com um agricultor chamado Benjamim Caniçal, também ele de origem madeirense, demasiado velho para trabalhar a terra mas ainda vigoroso o suficiente para engravidá-la três vezes. Quem engravidou a portuguesa pela quarta vez foi Mutu-ya-Kevela.
Mutu-ya-Kevela é uma figura lendária da resistência ao colonialismo português. Foi o último soma inene (rei) do Bailundo independente. No início do século XX, aliado a um outro grande guerreiro (também famoso por dominar as artes mágicas), Samacaca Samba yo Londungo, mobilizou dez mil guerreiros, lançando uma série de ataques contra comerciantes e postos militares portugueses, arrasando tudo e escravizando os sobreviventes. Alguns destes portugueses escravizados seriam depois comprados e libertados por um rico comerciante de borracha chamado António Raimundo Cosme, um angolano negro, malanjino, que falava umbundo fluentemente, conhecia as leis e os costumes da nação ovimbunda e mantinha laços de amizade e de parentesco com as autoridades tradicionais.
Em criança, ouvi velhos colonos contarem inúmeras histórias de Samacaca. Dizia-se que os vendavais lhe obedeciam, assim como as serpentes, e que era capaz de se tornar invisível aos olhos dos inimigos. Em algum momento, perdeu as artes mágicas. Foi aprisionado em 1905 e deportado para a Guiné-Bissau, onde terá falecido. Até hoje existe um pano, do vestuário tradicional, que tem o seu nome. Os panos com os quais as mulheres se cobrem costumavam ser lançados, todos os anos, em padrões diferentes, ficando com o nome de personalidades ou de acontecimentos que marcaram essa época. A samacaca é um pano estampado em vermelho, preto e amarelo, cores que, por coincidência, são hoje as da bandeira angolana.
Tarcísio ainda guarda uma samacaca que pertenceu à avó madeirense, a tal que foi escrava e depois mulher de Mutu-ya-Kevela. Presa a uma das paredes do bar, tem uma fotografia amarelada, já muito gasta, na qual se pode ver dona Isabel vestida com os panos tradicionais, ao lado de outras quatro esposas do rei.
– Veja! Ela estava vestida com esta mesma samacaca!
Cinco anos após conversar com Tarcísio no seu restaurante, no Bié, comprei, num alfarrabista de Lisboa, um opúsculo cujo título me chamou a atenção: Memórias de Um Comerciante do Mato. Já em casa, ao folhear o livro, encontrei uma reprodução da fotografia que Tarcísio expõe na parede do restaurante. Só nessa altura compreendi quem era o autor daquelas memórias: o mesmo António Raimundo Cosme que comprou a liberdade dos comerciantes portugueses escravizados por Mutu-ya-Kevela.
Cosme dedica cinco páginas à guerra do Bailundo. Fala da morte de Benjamim Caniçal – que teve o peito atravessado por uma lança – e dos prisioneiros do rei. Lamenta o desinteresse das autoridades portuguesas pelo destino dos infelizes comerciantes. Narra as peripécias por que passou, as conversas em que se demorou, todo o capital investido até conseguir chegar à fala com o rei e, finalmente, comprar a liberdade dos portugueses. Alguns deles nunca lhe agradeceram.
Dedica mais linhas a dona Isabel do que à descrição do conflito. A portuguesa, uma mulher pequena mas de porte nobre, olhos largos e claros, cheios de luz, impressionou-o muito. Impressionou-o ainda mais a declaração dela quando lhe explicou ao que vinha:
– Sou mulher de um rei. Não saberia ser livre longe da sombra dele.
Dizem os velhos que Mutu-ya-Kevela foi capturado em combate e lançado vivo num caldeirão de água a ferver. Saltou do caldeirão mais vigoroso do que nunca, rindo alto e insultando o tenente Pais Brandão, pois o guerreiro ovimbundo era como a abóbora grelada (omuto), a qual, por mais que a fervam, nunca chega a cozer.
O relatório do tenente Pais Brandão contradiz a versão popular. Confirma, contudo, o heroísmo do rei do Bailundo: “(…) ficou um grupo de gentio com o chefe principal da revolta, Mutu Aquebera, tentando um supremo esforço, tentativa frustrada porque é visado a menos de cem metros pelo soldado nº 34 da 1ª Companhia do extinto Batalhão de Caçadores nº 3, Mateus Bartolomeu da Costa, que com a máxima paz de espírito lhe despedaçou o osso frontal com uma bala”.
Dona Isabel recusou-se a abandonar a ombala do rei, onde criou os seus filhos e onde veio a falecer 20 anos mais tarde.
(Opinião publicada na VISÃO 1457 de 4 de fevereiro)