Vejo-o todas as tardes, sempre que vou nadar. Cruzamo-nos no comprido pontão de madeira, uma estrutura elegante, que se adentra uns cento e cinquenta metros pelo oceano Índico, terminando em duas escadas que se afundam na mansidão das águas, uma para a direita e a outra para a esquerda. A meio do pontão existe um pequeno bar, com dois ou três cadeirões de verga, onde é possível beber cerveja, mais ou menos gelada, e comer os melhores camarões grelhados da ilha. Chama-se – sem surpresa – O Pontão.
Mário é um homem grande e pesado. Na juventude foi futebolista profissional, ao mesmo tempo que estudava Biologia. Nunca terminou o curso. Vejo-o sair do mar, subindo as escadas de betão, crivadas de crustáceos e ouriços, enquanto a tarde escurece com a sua tristeza.
“Agora desapareceram os cavalos-marinhos.” – Diz-me, como resposta ao meu boa-tarde. Na sua voz de viúvo, aquele “agora” soa como um choro. Fica-se com a impressão de que viu morrer o último cavalo-marinho do mundo. “As redes…” – Acrescenta. E logo se cala.
Convido-o a sentar-se. Sento-me ao lado dele e mando vir duas cervejas. Bebemos em silêncio, como compadres num velório. Mário poderia falar durante horas sobre os galeões, os pangaios e os dhows naufragados ao largo da ilha. Sobre os tesouros saqueados com a conivência dos poderes públicos. Sobre os corais que os pescadores insistem em retirar do oceano para fabricar cal. Sobre as baleias que chegam em julho, quando o mar esfria, e se juntam ao crepúsculo para cantar a beleza do mundo. Porém, prefere calar-se. Não é pessoa de muitas palavras. O que sei sobre ele foram outros que me contaram.
Chegou à Ilha na companhia de uma holandesa loira, tão alta quanto ele, com uma gargalhada transparente e uma sede inesgotável. Conta-se que era capaz de beber mais do que qualquer homem, cristão ou muçulmano, sem jamais perder o prumo. Juntos abriram uma agência de turismo subaquático. Levavam os turistas a visitar os navios naufragados, a ver os golfinhos e as baleias, ou a nadar com os tubarões no alto-mar.
Mário e eu nascemos na mesma cidade. Contudo, jamais falamos sobre isso. Sei que ele sabe que sou do Huambo. Ele sabe que eu sei. Somos como dois espiões que se reconhecem num salão cheio de gente, mas fingem desconhecer-se.
“Em menino tive um rio.” – Diz-me Mário, já o sol se desmancha diante de nós, dissolvendo-se no escuro espelho líquido. – “Foi antes de conhecer o mar.
Diz-me: como fazem as pessoas que nunca foram abraçadas por um rio?”
Olho-o atordoado:
“O Calohumbula?”
Digo aquilo e logo me arrependo. Mário faz de conta que não me ouviu. Continua:
“Quando estou muito cansado, quando não posso mais, fecho os olhos e deixo que o meu rio me leve para longe.”
“Há quanto tempo mergulhas?”
“Estudei Biologia no Rio de Janeiro. Comecei a mergulhar lá, no Brasil, em Fernando de Noronha. Vim a Moçambique para conhecer o Tofo, e acabei ficando como instrutor de mergulho. Nunca mais voltei a Angola.”
“Porque continuas a mergulhar?”
“É o meu ofício.”
“Mergulhas todos os dias, ainda que não tenhas clientes. Mas é como se não gostasses de mergulhar. Vejo-te sair do mar cada dia mais triste.”
Mário pede outra cerveja. Esquece os olhos na linha do horizonte que, a essa altura, se esboroa rapidamente, sendo difícil dizer onde termina o mar e começa o céu. Corvos passam grasnando sobre as nossas cabeças. Depois que passam o silêncio dilata-se e lateja, como uma pancada na nuca.
“O mais pequeno infinito do mundo não cabe no pensamento humano.” – Diz Mário. Percebo que não está a falar comigo. Ou então está a falar comigo, mas é como se eu fosse um corvo. Não digo nada.
A mulher de Mário chamava-se Marjolijn. Morreu de repente, deixando-o com três filhas pequenas, que conversam entre si num holandês inventado quando querem que ninguém mais as compreenda. Herdaram da mãe a gargalhada clara e a paixão pela vida. Por vezes, Mário leva-as a ver o mar.
“Quando comecei a mergulhar achava que o mar era infinito.” – Continua Mário. – “Achava que o mar duraria para sempre. Hoje sei que está a morrer. Vejo-o morrer todos os dias. Primeiro, vi desaparecer os corais, depois as holotúrias. Hoje já é difícil encontrar lagostas grandes. Quando as minhas filhas tiverem a nossa idade estas águas estarão inteiramente mortas.”
Também eu fui abraçado por um rio. Mário não vem apenas do mesmo país que eu – de resto, isso não diria muito sobre ele. Vem de uma mesma infância. Uma infância partilhada, isso sim, é intimidade.
Quando ele se levanta, ergo-me também eu e abraço-o. Ele devolve o abraço, um pouco envergonhado, acreditando talvez que bebi demais.
Depois que Mário se vai embora volto a sentar-me, fecho os olhos e penso no Calohumbula. Sinto o abraço dele, e deixo que me leve para longe.
(Crónica publicada na VISÃO 1365 de 2 de maio)