Todas as tardes, o pequeno Gustavo ia brincar para o jardim público. O pai ficava na janela vendo-o cruzar a estrada. O filho herdara dele a congénita inaptidão para ser criança. O menino caminhava com os ombros arqueados, antecipadamente cansados. Parecia o outono pisando flores.
Não tardava a regressar a casa, o corpo inclinado para a frente com pressa em fugir da luz. Sentava-se na penumbra da casa, a televisão ligada. Não assistia a programas infantis. Sintonizava os noticiários internacionais. O pai preocupava-se: hoje em dia, os noticiários deviam surgir com a bola vermelha que assinala os programas com cenas de crueldade e de violência gratuita. Mas não havia escolha. É difícil cuidar sozinho de um filho, sobretudo naquela idade. Por isso, Gustavo passava horas sentado frente à televisão, os olhos escancarados, os pés balouçando sem tocarem no chão. A cada dia parecia mais e mais leve. De cada vez que regressava do trabalho, o pai receava encontrar o filho levitando de encontro ao teto.
Certa vez, numa rara ocasião em que se demorou no jardim, o menino entrou em casa trazendo um embrulho nas mãos.
– O que trazes aí? – perguntou o pai.
– É um país – respondeu.
– Um país?
– Estava no meio do caminho, parece que o deitaram fora – disse o menino.
– E para onde levas esse país? – quis saber o pai.
– Vou levá-lo para a minha cama, deve estar cheio de frio.
Gustavo deitou-se na cama e ajeitou o embrulho ao seu lado. Cobriu-o com um lençol, beijou-o na testa e contou-lhe uma história. Quando sentiu que o país tinha adormecido, o menino fechou os olhos e dormiu.
A meio da noite, o pai escutou vozes, espreitou pela fresta da porta e pareceu-lhe ver um menino a sair da cama. O menino era negro e falava uma língua que ele desconhecia. O pai teve pena de que a esposa não estivesse ali: desde que ficara órfão de mãe, Gustavo nunca mais convivera com outra criança. Agora, ali estavam dois meninos a brincar no mesmo aposento, tornando a noite mais leve e breve.
A madrugada já despontava e o pai voltou a despertar com ruídos na sala. Gustavo regressava ao quarto. Trazia ao colo o embrulho e conduzia-o de regresso ao leito. Irritado, o pai sentenciou:
– Essa porcaria veio da rua, deve estar toda suja.
Determinado, avançou pelo aposento, recolheu o embrulho, sacudiu vigorosamente os lençóis e dirigiu-se para a porta.
– Vou deitar esta porcaria ao lixo – anunciou.
– Não faça isso, pai – pediu o menino em prantos. – Por amor de deus, pai. Esse é o meu amigo, o meu único amigo.
O pai acolheu o pedido. Voltou atrás, passou o embrulho para as mãos do filho. E viu como Gustavo, o seu fleumático Gustavo, abraçava o estranho volume nos braços.
– Vem comigo – disse o filho, dirigindo-se ao embrulho. – Vamos ver televisão.
E sentaram-se, assistindo ao noticiário internacional. O locutor falava dos países do mundo, cada um carregando mais infortúnio do que o anterior.
E assim aconteceu durante dias. Gustavo e o seu amigo ficavam horas sentados na mesma sala escura, iluminados apenas pela intermitente luz do plasma.
– Vamos esperar até apareceres na televisão – solicitou Gustavo ao país, agora seu companheiro de quarto.
Em vão, o pequeno anfitrião e o visitante espreitaram o ecrã à espera de ver imagens do pequeno país, existindo, sereno e soberano, na sua própria geografia. Até que começaram a duvidar se alguma vez assistiriam a uma notícia sobre esse país longínquo e discreto, esse mesmo país que agora se sentava numa sala escura, mãos dadas com um menino triste. Gustavo tinha, porém, uma esperança: aquela sua televisão era de alta definição. Não havia nação neste mundo que escapasse.
Uma noite, ao jantar, o pai pediu ao filho novidades do seu amigo.
– Como vai o embrulho? – perguntou.
– Não é um embrulho – reagiu, magoado, o filho. – É um país e está muito triste.
Gustavo contou, então, o que tinha sucedido no dia anterior. O noticiário tinha aberto com a notícia de um professor decapitado em França por ter exibido na escola imagens de Maomé. Inesperadamente, o pequeno país ergueu-se do sofá e proclamou: “Aquilo aconteceu comigo.” Por um momento, Gustavo pensou que o país se queria apresentar como sendo a França. Não era o caso. O professor fora assassinado em França. Isso ele sabia. O que o espantava não era aquela notícia, mas a ausência de notícias que ele tão bem conhecia: os cidadãos inocentes que eram, todos os dias, degolados por fanáticos religiosos. E tudo isso acontecia no seu território.
– Não sabia – declarou Gustavo.
– Talvez a televisão não fale desses casos, porque não conhece o nome dos falecidos – pensou o país em voz alta. – Vou mandar-lhes a lista dos que foram decapitados.
A esse trabalho se entregou o visitante. Dia e noite, ele fez chamadas telefónicas e ia acrescentando os nomes dos sacrificados. O inventário já tinha já duas centenas de nomes quando ele desistiu. Já tinha esgotado as suas fontes de informação. Muitos dos assassinados viviam tão remotamente que apenas a morte sabia do seu paradeiro. Foi isto que relatou ao seu pai o pequeno Gustavo. Naquele mesmo momento, numa sala anexa, o seu amigo país dormia com a lista fúnebre sobre o peito.
O pai escutou tudo aquilo e pousou os talheres. O que ia perguntar pedia a suspensão do mundo.
– É por isso que não comes? Por estares triste?
Gustavo não respondeu. Disse apenas que tinha pensado num modo de ajudar o amigo. Ele mesmo iria entregar a lista dos massacrados à estação de televisão.
– É o que pensaste fazer, filho? – perguntou o pai. – A estação de televisão fica na capital, e eu não tenho planos de sair daqui tão cedo.
Uma vez mais, Gustavo permaneceu em silêncio. Despediu-se do pai com um abraço longo e estreito. Nessa noite, se o pai estivesse acordado, teria visto o seu filho e o seu amigo país a aproximarem-se do aparelho de televisão e a entrarem, um após o outro, no ecrã de plasma. Desapareceram como se fossem luzes engolidas pelo ávido retângulo negro.
O que sobrou, tombado no chão da sala, foi o papel com os nomes dos degolados. Aquela lista era demasiado verdadeira para caber na televisão.
(Opinião publicada na VISÃO 1443 de 29 de outubro)