Mapeador de Ilhas
O regresso a casa
Puxou o punho bem para trás do corpo e desfechou um murro movido por raivas milenares. Aconteceu, então, o impensável: Matilde desviou-se do golpe

A lembrança de Ilda
Com oitenta e um anos, não há semana que não escreva uma cartinha para cada um dos seis filhos. É assim que insiste em chamar: uma “cartinha”

O culto dos pesarosos
Ainda me ocorreu argumentar que eu era feliz exatamente porque lutava, à minha maneira, para mudar esse afligido mundo

Sem teto
Maurício volta a entrar para o quarto, liga o computador e espreita as notícias do mundo. Não é exatamente o mundo que ele quer ver. Quer deixar de se ver no mundo

A pasta do vizinho
Chamavam-lhe o “Doutor da Pasta” porque o homem caminhava invariavelmente com uma pasta apertada contra o peito. E fazia-o com tal zelo que uma vizinha chegou a especular que se tratava de uma carga explosiva

O nome do pai
Aquela bagagem servia apenas para encher a vista dos outros. Um viajante é medido pelo tamanho da bagagem

A próxima visita
Não importa o tamanho da espera. A diferença está na idade de quem espera. É o que ele diz enquanto acaricia os joelhos como se neles se desenhasse o redondo da velhice

Viúvas vizinhas
Quase não havia distância a separarmo-nos. Como não haviam de ressoar dentro de mim os gritos de socorro da vizinha?

A estátua em segunda mão
Samora finge ignorar a solidão que o afasta da realidade. Talvez por isso, para fugir à sua condição, esteja de fato de treino

Os números mortos
Era a moça mais linda, no tempo do liceu. Exibia essa beleza que só existe para ser eterna

A cicatriz
O meu pai teve um destino engrandecido: foi dono de uma funerária. A empresa chamava-se “Eterna Esperança”. O pai recebia os clientes como se estivesse numa agência de viagens

A Tabuleta
– As pessoas para mim são como nuvens – divagou o mais novo dos três. – Passam por nós e cada uma parece ser única, mas depois são todas iguais

O tamboreiro
A guerra que agora vivemos espalhou tanta pólvora sobre os caminhos que é bem possível que os vivos e os mortos se tenham perdido uns dos outros

Lição de caligrafia
A escrita pretende ser uma arrumação do caos. E como há muita variedade de caos, também há muitos modos de os ordenar

O vendilhão do tempo
Dizem os antigos: deixemos o tempo sossegado para que ele possa dormir dentro de cada pessoa

O descrucificado
Às vezes penso que, desde há milénios, estamos todos, no mundo inteiro, abrindo a mesma estrada

A roupa e o nome
As razões dela eram simples de explicar: em casa ou no hospital, os nossos mortos são nossos, lavámo-los com as nossas lágrimas

O colchão
Com o andar do tempo, as mãos da minha mãe foram perdendo agilidade. Deitada sobre o seu colo, eu sentia um desgosto antigo travando-lhe os dedos. Não é no rosto, é nas mãos que a idade se revela

Morrer de raça (2)
Sabíamos que o mundo era grande, mas estávamos longe de pensar que houvesse uma tal variedade de raças

Morrer de raça (1)
Aconteceu o que receávamos: saiu daqui "muno mutema" e voltou "murungu". Noutras palavras, quando saiu era dos nossos, um negro congénito. Quando regressou, era branco

Uma submissa desobediência
Tudo isso recordo, sentada na minha cozinha, em frente à porta que nunca mais se abre. O locutor da rádio insiste: hoje pode ser o primeiro dia de uma vida nova
