Só tinha duas horas para falar, mas acabaram por lhe dar 15 minutos suplementares, para responder às perguntas dos representantes dos Estados-Membros das Nações Unidas. Na imprensa, fazem-lhe os mais diversos elogios: que, com grande à vontade, falou de forma descontraída, clara, apaixonada, brilhante. Encantou tudo e todos com a sua preparação (é-lhe reconhecida grande capacidade de rtabalho e uma inteligência superior) e os seus dons de oratória, dignos da alcunha que Vasco Pulido Valente lhe colou à pele: “picareta falante”.
Terceiro dos nove candidatos a ser ouvido, na sede da ONU, em Nova Iorque, puxou dos seus galões. Falou da sua participação cívica, enquanto estudante universitário, nos bairros da Curraleira e da Quinta da Calçada, em Lisboa; dos 28 anos de participação política – seis e meio dos quais como primeiro ministro; e dos dez em que esteve à frente do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Falou dos planos que tinha para as nações que se uniam à volta de uma mesma organização e de como os países se poderiam juntar para combater o problema dos refugiados ou das armas nucleares.
O que os representantes dos países não sabem é como é que Guterres se fez. Rapazinho com raízes (e ligações forte) à Beira Baixa, aprendeu a ler aos quatro e já na altura impressionava os companheiros de comboio, que o ouviam a ler as tabuletas das estações de caminho de ferro. Acabou depois o liceu com 18 valores e o Instituto Superior Técnico com 19, em 1971.
Bem comportado, católico com idas dominicais à missa, habitué da Juventude Universitária Católica e do Grupo da Luz (onde se cruzava amiúde com Marcelo Rebelo de Sousa e tinha por referência o padre Vítor Melícias), sempre se deu aos outros e às causas sociais. A política era outro campeonato e Guterres não gritava plavras de ordem nem pintava paredes. A esquerda, por seu lado, com Mário Soares à cabeça, não via com bons olhos que um católico com ligações à Opus Dei (à qual esteve ligado) se imiscuísse num mundo que se autoproclamava, entre outras coisas, laico. Mas a separação dos dois mundos não durou muito. Em 1974 (a 25 de abril, garante), pela mão de António Reis, filiou-se no Partido Socialista.
Faz o seu percurso: foi deputado, líder parlamentar, andou pelos gabinetes (com Salgado Zenha) e em várias conspirações, nomeadamente no sótão de sua casa, em Algés. Em 1992, foi eleito secretário-geral do PS – experiência preciosa já que, como disse em Nova Iorque, “não há nada pior do que liderar um partido durante 10 anos para resolver crises”. Três anos depois, com o slogan “razão e coração”, tornou-se primeiro ministro (o melhor da democracia, segundo uma sondagem da Pitagórica, realizada em 2014), incutindo à política uma aura mais humana e dialogante.
“Uma das coisas de que fui acusado, quando fui primeiro ministro do meu país, foi ter apostado no diálogo”, disse Guterres em Nova Iorque. Mas acrescentou: “acredito que isto, nas Nações Unidas, é uma qualidade.” Se, no congresso socialista de 1979 apresentou o documento “10 anos para mudar Portugal – Programa do Partido Socialista para os anos 80”, na prova a que foi sujeito, na ONU, mostrou o seu programa para mudar o mundo. Se consegue ou não ultrapassar a barreira de não ser mulher nem um cidadão da Europa de Leste (duas características que se deseja, para o sucessor de Ban Ki-moon) ainda é cedo para saber.