A primeira sessão do julgamento de Manuel Maria Carrilho acusado de violência doméstica sobre a ex-mulher, a apresentadora Bárbara Guimarães, começa finalmente – esteve marcado para outubro mas foi adiado, depois de Carrilho pedir escusa da juíza. Estamos no 5º piso do edifício B do Campus da Justiça, em Lisboa.
O acusado já está na sala.
A juíza dirige-lhe a palavra:
“Senhor professor, vou pedir-lhe para ficar junto do microfone
Manuel Maria Carrilho, o professor universitário ex-marido de Bárbara Guimarães, levanta-se e prepara-se para responder: nome, idade profissão…
-“Professor universitário…professor catedrático reformado”, corrige
Segue-se o valor líquido do rendimento, o estado civil, o número de filhos, a informação de que possui casa própria, sem amortização ao banco.
“Sabe, Senhor Professor, os juízes também fazem trabalho de casa. Fui ler o prefácio que escreveu para o livro de Gilles Lipovestky. ( ‘A Era do Vazio, uma reedição da obra do filósofo francês, de 1993). Fiquei a saber que é um homem bem falante, capaz de articular. Quer falar dos factos que aqui o trazem?”
Carrilho faz um breve sorriso: “De momento, não pretendo fazer nenhuma declaração”.
Chame-se a assistente, determina a juíza, Joana Ferrer, de seu nome.
Bárbara Guimarães entra e há de ser ouvida durante quase quatro horas.
“Lembre-se que não presta juramento mas o tribunal espera de si a verdade. O que me pode relatar sobre o desfecho do seu casamento?”
Segue-se todo o rol, como foi tudo mais ou menos normal até o nascimento do filho, Dinis, em 2004, e da ida de Carrilho para Paris, como embaixador na Unesco. E como tudo se complicou depois do nascimento da filha, Carlota, em 2011, “num crescendo em que acabei por ter de o por fora de casa, o que não é normal, depois de tentar que aceitasse o divórcio”.
A descrição que se segue em praticamente tudo condiz com o que os especialistas em violência doméstica classificam como o ciclo da violência: períodos de lua de mel, alternados com momentos de tensão que culminam em agressão, física mas também psicológica.
“Ele voltou revoltado por ter de deixar o cargo, começou a isolar-se, a não gostar de ouvir barulho, o que é um pouco difícil quando há crianças em casa. E a controlar-me os passos, a dar opiniões negativas sobre o meu trabalho, a afastar a minha família lá de casa.”
E a amuar dias a fio sem lhe falar. “Porque andas com esses decotes? Andas armadas em nova, não vês que já não és?”. Que estava velha e decadente, que ia acabar por se espalhar ao comprido, que tinha era de ficar em casa a cuidar dos filhos. “Como se eu não o fizesse, todos os dias”.
Sucediam-se conversas azedas por causa dos programas, insinuações de envolvimento de Bárbara com um dos jurados de um programa ( “Porque dancei com o Futre no fim de um ‘Tocámexer’ ouvi logo: Andas a fornicar com ele, é?”), discussões que acabavam com empurrões contra a parede. “E pontapés.”
A juíza há de interrompê-la várias vezes a questionar: “Mas não foi ao hospital? Porquê? Vou dizer-lhe uma coisa: é a primeira vez que há perícias feitas a fotografias. E digo-lhe: vale zero. Vá, descreva-me mais situações”.
Não se retrai nem quando Bárbara confessa: “É que isto é tão duro!”
“Isto é um tribunal criminal. Descreva lá mais…” Insiste a juíza.
E o ciclo recomeçava. “Ele chorava imenso, pedia desculpa, que aquilo era um amor-ódio, que não levasse tudo tão a peito.” E logo a fase Lua de Mel passava e voltava a tensão: “Dizia-me que nunca tinha perdido uma guerra na vida, e não ia perder aquela.” E que depois ia buscar a Carlota e continuava: “estás a ver a tua mãe? Quer destruir a nossa família”. Outra vez, também com a menina ao colo, pegou numa faca e ameaçou: ‘Mato-te, mato-os teus filhos, e mato-me a seguir”.
Ali Bárbara contou também como “o meu ex-marido” convenceu o filho a conseguir o código do seu telefone para a controlar. Que quando ela chegava dos programas ouvia sempre o mesmo: “Já viste a tua figurinha decadente? Já não tens idade para isso.! E que ela ficava triste.”
Asdiscussões decorriam sobretudo na cozinha ( aqui se percebe que Bárbara não sabe dos conselhos da Subcomissária da PSP Aurora Dantier, responsável pelo Espaço Júlia: Nunca discutir em sítios de onde não se consegue fugir ou em locais em que haja objetos cortantes).
Ou no sótão: “Tens noção do que te pode acontecer? Um dia vais pelas escadas abaixo.”
Ali se ouviu ainda como ele a gozou por ir comemorar os 40 anos, como não quis o cão que lhe ofereceram de presente, como lhe disse que ela não ia nada dançar para o Jamaica (discoteca afamada da zona do Cais do Sodré, em Lisboa) e ia mas era para casa com ele.
Mas que ela não foi.
Outra vez, estava ela a tomar banho, ele entra na casa de banho e volta aos insultos do costume – velha e decadente. “Eu disse-lhe para sair. Ele regressou de máquina fotográfica na mão: ‘qualquer dia quem vai para os sites pornográficos és tu’.” E lá saiu, depois de lhe dar mais um pontapé no tornozelo.
O ciclo dava nova volta. Carrilho ainda terá insistido num fim de semana romântico – há, nos vários dossiês do processo, uma troca de e-mails a dar conta de uma reserva e seu cancelamento no Farol Design Hotel.
E a juíza a insistir: “Mas nunca pensou ir ao hospital?
-“Não, tive vergonha.”
“Com tanta divulgação, tanto apoio que se criou para a violência doméstica? Tenha paciência, esse argumento é fraquinho.”
Joana Ferrer, a juíza que diz ter muita experiência em processos destes, há de ainda acrescentar : Ó Bárbara, causa-me nervoso ver mulheres informadas a reagirem assim. Se tinha fundamento, devia ter feito queixa. ( Não saberá Joana Ferrer que um terço das mulheres assassinadas em 2015 tinha feito queixa na policia?)
Bárbara há ainda contar como decidiu pô-lo fora, enviar os livros em caixotes para a casa dele em Viseu, e mudar as fechaduras da porta. E como ele lhe apareceu à porta, noite dentro, aos gritos: “Vou matar-te!” Ou a dirigir-se ao filho: “Dinis, a tua mãe quer matar-te”.
Tudo isto sem um soluço, talvez a voz um pouco embargada, em alguns momentos. “Isto é tudo para me destruir. Ele não vai parar”, continua, já em jeito de confissão, depois de enumerar tantas ameaças, mais ou menos veladas, físicas e psicológicas. As que a encheram de medo, medo esse que paralisa.
“Mas nunca me vão ouvir dizer mal dele, nunca me vão ouvir dizer mal dele aos meus filhos”
Antes disso, a juíza já lhe perguntara diretamente:
-O seu ex-marido mau pai?
-É. Não se coíbe de ir para a imprensa dizer mal da mãe.
Passaram quatro horas desde que Bárbara começou a responder às perguntas do tribunal.
-Fica marcada nova sessão para a próxima sexta-feira, remata a juíza, a mesma Joana Ferrer que ainda há de dizer: “E eu a pensar que o Senhor Professor ainda ia falar comigo hoje…”
No fim, Carrilho pergunta, de sussurro, aos seus advogados:
-Devo cumprimentar os juízes?
Eles acenam-lhe que não.
Cá fora, esperam-nos as câmaras e microfones em riste. Saem Barbara e Carrilho, separados, sem pronunciar palavra.
-“É normal os juízes tratarem um arguido por Senhor Professor?”, disparam a Pedro Reis, advogado da apresentadora.
“É normal tratarem como entenderem. Só posso dizer que eu não o trato por Senhor professor”.