A minha relação com a minha mãe foi sempre difícil. Começou logo com o meu nascimento
(sou o filho mais velho)
quando a pus à morte com uma eclampsia
(contava que disse ao meu pai
– Vou morrer
e que o meu pai lhe respondeu
– O que é que queres que eu faça?
o que não a animou por aí além)
e depois fui eu que estive a morrer por se terem esquecido de mim para cuidarem dela: salvou-me uma tia avó
a Avó Galhó
que me encontrou para ali sem respirar, preveniu assustada
– O miúdo, o miúdo
e lá salvaram o miúdo, de cabeça toda torta dos ferros com que o puxaram. Esta foi só a primeira. Depois, aos sete ou oito meses resolvi entrar em coma com uma meningite meningocócica que na altura matava muita gente e ainda hoje mata muita gente. Uma criança de oito meses em coma é decerto um espectáculo horrível para qualquer mãe. Com injeções de sulfamidas na barriga conseguiram salvar-me. Quase logo a seguir, aos três anos, uma tuberculose pulmonar. Logo estas três coisas seguidas são de fazer perder a cabeça a um santo. Entretanto assustava-a: aos três meses já tinha não sei quantos dentes, com um ano falava como um Demóstenes, com dois resolvia problemas e, além do português, dizia coisas em espanhol, assustava os meus pais com uma precocidade esquisitíssima, que os levou a pensar, por causa destas proezas de circo, que o meu irmão João era atrasado. Depois, para aí com quatro ou cinco anos ensinou-me a ler, que eu aprendi em três penadas e comecei logo a escrever, coisa que ela não me tinha ensinado. A seguir meteu-me na escola onde me aborrecia de morte porque nada daquilo me interessava. Uma ocasião resolveu espreitar a aula e eu estava sentado ao contrário na carteira a olhar para o tecto. Mais ou menos nessa altura fui mostrar-lhe os meus poemas
(lia os livros do meu pai às escondidas)
garantindo que era o maior poeta do mundo. Não acreditou em mim e fez bem, mas pelo sim pelo não consultou o meu pai. Ele dizia-me versos e eu decorava-os logo. Também não me interessava brincar, os brinquedos irritavam-me, já sabia o que iam dizer-me antes de começarem a falar e portanto ia-me embora antes de acabarem as frases. Em resumo: devia ser um chato para os outros e era também um chato para mim. Tirando escrever não me apetecia mais nada, e as pessoas eram todas tão óbvias. Portanto fui um aluno péssimo, uma criança esquisita, uma entidade insólita e sofria como um cão com isso. Seguiu-se a pavorosa chumbada do liceu, sem ligar nenhuma às aulas, com notas miseráveis. Como num instante metia meia dúzia de noções no caco aos dezasseis anos matricularam-me na Faculdade de Medicina, eu a quem a ideia de continuar a ouvir professores me aborrecia de morte. Na esperança que o meu pai me pusesse a trabalhar numa livraria passei três anos no primeiro ano, sem estudar fosse o que fosse, ocupado com um poema compridíssimo
(todos os meus poemas compridíssimos acabavam no lixo sempre com a mesma frase de despedida
– Ainda não é isto)
e a minha mãe utilizou o tenebroso estratagema de me prometer a carta se eu não chumbasse de modo que passei a fazer todas as cadeiras na primeira época, descobrindo, surpreendido que era mais fácil não reprovar do que reprovar e fiquei médico num instante. Do que me lembro melhor do curso foi um professor dizer para um colega meu
– Que você tenha chegado ao sexto ano da Faculdade não me espanta. O que me surpreende é que tenha feito a quarta classe
eu que ainda sei de cor as serras do sistema galaico-duriense, as estações do ramal da Beira Baixa e os quinze ramos da artéria oftálmica bem como páginas inteiras da lista dos telefones, tudo, como facilmente se percebe, utilíssimo. Depois comecei a gostar de ser médico porque gostava das pessoas. Quando foi do estágio de Pediatria colocaram-me numa enfermaria de meninas e meninos com doenças terminais, e apaixonei-me por um garoto chamado Zé Francisco. Quando morria um adulto vinham dois empregados buscá-lo com uma maca. Como o Zé Francisco tinha cinco anos veio um apenas que o embrulhou num lençol e se foi embora com ele corredor adiante. Um pé do Zé Francisco, fora do tal lençol, baloiçava. Decidi:
– É para esse pé que vou escrever
e até hoje. Quando desatei a escrever para um pé comecei, aos poucos, a ser capaz de dizer aquilo que queria. Voltando à minha mãe é evidente que um filho assim é um susto, uma preocupação e uma trabalheira. Não queria estar no lugar dela a aturar uma criatura aberrante: dei-lhe mais ralações que os meus irmãos todos juntos. Achava-me, por exemplo, mentiroso: não era: apenas queria tornar suportável a realidade. Dizia-lhe
– Eu sou diferente
e ela a mirar-me banzada. E depois não entendia como é que eu sabia as coisas e não entendia o motivo de ela não entender: era tudo tão óbvio, entrava tudo pelos olhos dentro. Quando Stravinsky, Picasso e Cocteau acabaram uma ópera foram mostrá-la a Diaguilev, o grande empresário russo. Diaguilev colocou o monóculo no olho e pediu-lhes
– Espantem-me
após o que montou a ópera, e os três, Stravinsky, Picasso e Cocteau colocaram-se junto à porta, esperançados, a fim de ouvirem os comentários do público. Os primeiros a sair foram um casal em que o marido dizia à mulher
– Se eu soubesse que era tão estúpido tínhamos trazido as crianças
e desculpem mas já estou farto desta crónica de maneira que me vou embora para o quarto, deitar-me na cama e olhar o tecto. Há alguma coisa mais fascinante do que estar sozinho com um tecto?