Nunca o vi senão bêbado, enorme, amigável, fraternal, a pesar-me nos ombros as mãos imensas
– Amigo
inchado de vinho e ternura mas de violência fácil para os que o acompanhavam
– Cala-te, fantoche
antes de regressar a mim, entusiasta, numa arrumação que me contagiava
– A gente, por assim dizer, somos irmãos
a baloiçar ora numa perna ora na outra, um bocado precário
– Somos irmãos ou não somos?
Por trás dele alguém escrevera na parede, numa caligrafia cuidada
Eu não faço senão sonhar
e alguém por baixo, numa letra torta
Nunca cagas?
Mas isto na parede, para cá da parede o seu volume gigantesco
– Somos irmãos
eu, que apenas o conhecia de raros encontros de acaso, geralmente perto de estabelecimentos de bebidas, de bagaço em riste, a concordar
– Somos irmãos
porque, debaixo da sua violência por enquanto contida, um coração de passarinho incrustado na montanha de carne que era a sua.
– Tenho uma filha sabia?
e, no interior de uma lágrima que não escondeu, quase um suspiro, quase um gemido
– Não a vejo há anos
escutado com respeito pelos compinchas, a quem de vez em quando apertava um braço ao acaso até eles recuarem num pulo, a massajar o osso, provocando-lhe desprezo pela sua fraqueza
– Lingrinhas
e, a mim, abraços cuidadosos, num hálito de álcool que mataria moscardos
– Não aguentam nada
intimando-os
– Apertem aqui a mão ao meu amigo doutor
e mãos molhadas, cerimoniosas, a agarrarem a minha, obedientes
– Doutor
recuando com prudência, para trás do meu irmão, que não admitia intrusos entre nós
– O doutor é meu sócio, não é vosso
minucioso no que respeitava à pirâmide social de que ele ocupava o vértice. Propunha-me
– Vai um bagacinho, amigo?
à procura de dinheiro nos bolsos vazios. Se eu tentava dar-lho zangava-se
– De si só quero fraternidade, tragam-me um bagaço depressa que o doutor é um príncipe.
E o bagaço lá aparecia, mais forte do que álcool de farmácia, a reduzir-me a cinzas as gengivas. Bebia-o todo, que remédio, de goela a arder.
– Está um bocado fraco, o cálice, explicava ele, precisava de um reforçozinho
embora, para mim, o
Eu não faço senão sonhar
e o
Nunca cagas?
perdessem um bocado a nitidez. Impedia-me a fuga para a porta, a falar da filha
– Um anjo
e de ter partido um braço à mãe por o impedir de vê–la:
– Andou de gesso três meses não acha que fiz bem?
eu
– Acho que podia ser mais brando
o que o exaltou:
– Mais brando com quem me proíbe quem amo?
Pensei que me ia esborrachar com o mindinho mas arrependeu-se a tempo:
– Desculpe-me o temperamento, doutor, há alturas em que não tenho mão em mim mas se lhe fizesse mal matava-me
sublinhado por um
– Pela alma da minha mãe que era uma santa
a secar lágrimas na manga. Não sei porque carga de água não tinha medo dele e a sua inocência comovia–me. Apertou-me com cuidado
– Não estou a aleijá-lo, pois não?
com os olhinhos minúsculos a piscarem lá em cima. Mostrei-lhe o
Nunca cagas?
na parede, que ele observou com atenção:
– Não acha que isto ofende as crianças?
eu, na dúvida, pelo sim, pelo não
– É capaz
e ele
– Claro que ofende, caralho, para quê palavrões.
Recolheu-se um momento em meditação e propôs-me
– Vamos comer qualquer coisa?
Mal toquei nos caracóis, mal toquei nos tremoços. Os colegas esperavam, submissos, enquanto a gente mastigava.
– Tenho de me ir chegando
disse eu. As mãos regressaram aos meus ombros
– Eu entendo, doutor, eu entendo mas lembre-se de mim.
Ordenou em volta
– Deixem passar o doutor
e ficou a olhar-me numa cumplicidade emocionada. Na esquina voltei-me e dei com ele a acenar
– Não se esqueça
e, de facto nunca me esqueço. Depois dessa vez não tornei a encontrá-lo. Cruzei-me com um dos adjuntos, por acaso, para as bandas do talho. O meu irmão estava no hospital por causa de uma diferença de opiniões com um russo que lhe meteu uma faca nas tripas, a recuperar da operação aos intestinos. Quanto ao russo os outros russos piraram-se com ele, de goela aberta e, portanto, as contas estavam saldadas. Lá o achei na cama. Reconheceu-me logo
– Doutor
e ficámos de mão dada até ao fim da visita. Ao sair dei por ele a chamar-me:
– A nossa amizade é para sempre ou não é?
– É
disse eu. Mal abandone a enfermaria apanhamos uma grossura de bagaços. Juro.