A minha mãe está sempre a perguntar-me
– Quando é que te casas?
com o meu pai a olhar para mim por cima do jornal, os dois à espera da resposta, digo
– Quando encontrar a mulher certa
e instalo-me na outra ponta do sofá, com o suplemento de Economia que o meu pai não lê e não me interessa nada mas tem os dois bonecos das sete diferenças na base da página, desenho um círculo à volta de uma (o chapéu maior num dos quadrados), desenho um círculo à volta da segunda (só quatro flores numa das jarras, na outra cinco), não encontro a terceira, guardo os óculos no casaco, dobro o jornal, levanto-me, respondo à minha mãe
– Mal encontre uma mulher como você
ajeitando a gravata porque gosto das coisas direitas, a minha mãe de regresso ao crochet, modesta
– O que não falta são mulheres como eu
ela que todas as semanas lembra ao meu pai
– Nem sonhas a sorte que tiveste ao encontrar-me
o meu pai a mirá-la de banda
– Olha-me esta
eu para o meu pai
– Nesse ponto a mãe está certa, teve sorte
o meu pai, a piscar-me o olho
– Molhos de dez por meio tostão furado em qualquer arraial de província
a examinar um botão da camisa, a minha mãe para mim, do fundo do crochet, surpreendida com o próprio atrevimento
– Não és maricas por acaso?
o meu pai a censurá-la de imediato
– Heloísa
eu a mudar de posição a bailarina da cómoda
– Descanse que não sou
de modo a que a cara dela aponte para mim, a minha mãe, culpada
– Estava a brincar é claro
o meu pai, que continuava zangado
– Há coisas com que não se brinca
eu para o meu pai
– Não leve tudo à séria que morre mais cedo
o meu pai para nós dois
– Acham possível que um filho meu maricas?
eu para o meu pai
– Por ser evidente que não é que não vale a pena exaltar-se
o meu pai para ninguém
– Há frases que dão azar
a minha mãe após um silêncio ao mesmo tempo curto e comprido
– Claro que no caso dele não há perigo
eu para a minha mãe
– Agora é que disse uma grande verdade não há perigo nenhum
a minha mãe para mim
– Gostava de ser avó, ter um menino cá em casa
eu para a minha mãe
– E há-de ter mais cedo do que pensa, senhora
e para o meu pai, entre homens
– Começo a vislumbrar umas hipóteses
o meu pai para mim
– Lá no escritório, filho?
eu para o meu pai
– No escritório e não só
o meu pai, esperançado
– Mas com atenção, com cautela, conhece-a bem primeiro
eu para o meu pai
– Vou fazer quarenta anos, senhor, não sou nenhum anjinho
o meu pai para mim
– Nós, homens, somos todos anjinhos
eu para o meu pai
– Foi anjinho com a mãe, pai?
a minha mãe para mim
– O teu pai era um sabido veio-me com o paleio todo
a repetir para si mesma saudosa
– O paleio que ele tinha
o meu pai para mim
– Foi ela quem fez tudo assim que me viu não me largou mais
a minha mãe para mim, num contentamento indignado
– Estás a ver-lhe a lata?
eu para a minha mãe e para o meu pai
– Foram os dois e pronto
a minha mãe para mim
– Mais do que eu
o meu pai para ela
– Quem era o homem afinal?
eu para a minha mãe e para o meu pai
– Valeu a pena não valeu?
o meu pai a dar uma palmada no joelho da minha mãe –
Há momentos em que parece que sim
a minha mãe para o meu pai
– Apesar da história com a Esmeralda acho que valeu
eu para a minha mãe
– E depois tiveram-me logo
a minha mãe para mim, num risinho subitamente tímido
– Foi atar e pôr ao fumeiro
o meu pai, contente
– Um menino que só nos deu alegrias
a minha mãe a sublinhar
– Bom aluno, boa pessoa, obediente, calmo
o meu pai para mim
– Tivemos muita sorte sabes
a minha mãe para o meu pai
– Muita sorte mesmo
o meu pai para mim
– Se for uma colega do escritório tens mais tempo para conhecê-la bem
a minha mãe para mim
– Mas não deites os foguetes antes da festa
o meu pai para mim
– Vai com calma, filho, vai com calma
eu para os meus pais
– Esta noite tenho bilhar na Associação, se chegar mais tarde não se ralem
a minha mãe para mim
– Tenho sempre medo de adormecer antes de meteres a chave à fechadura, pode acontecer tanta coisa
eu para a minha mãe
– Não estou quase nos quarenta anos, senhora?
de modo que, a seguir ao jantar, mudei de roupa, perfumei-me, engraxei os sapatos, melhorei o penteado, aumentei a melena, desci as escadas a dançaricar nos degraus, vi a sombra à minha espera, aproximei-me da sombra e só beijei o Tó Mané, atrás de um tapume, quando tive a certeza que ninguém nos via .