Estive há alguns anos em Jerusalém para receber o prémio mais honroso que, na minha opinião, existe no mundo. É atribuído de dois em dois anos, desde 1940, o primeiro vencedor foi Bertrand Russell e, ao contrário de todos os outros que conheço, não há um único laureado que não seja um escritor de cumeeira. Fiquei na primeira casa construída fora das muralhas, fui tratado como nunca em parte alguma, o primeiro ministro, Shimon Perez, fez o discurso da entrega, o presidente da Câmara de Jerusalém estendeu-me o diploma e, no discurso de agradecimento, falei do que quis e como quis porque me disseram que não haveria qualquer restrição ou censura às minhas palavras. E de facto não houve, numa altura de grande tensão entre israelitas e palestinianos. Dias depois o Embaixador do meu País ofereceu um jantar a muita gente importante. Esse jantar foi especial para mim porque aprendi imenso acerca do meu sangue. Lá encontrei um senhor de bastante idade, que sobreviveu aos campos de concentração nazis, especialista em genealogia, que me contou a saga da minha família Lobo, desde que saiu de Portugal para escapar à fogueira da Inquisição. Ficaram na Holanda e, em meados do século XVII, partiram para o Brasil onde, ainda hoje, se encontram. Explicou-me a que ramo dos Lobos eu pertenço, falou-me de parentes meus que nem sonhava e de outros que sei quem são e encalhou na minha bisavó, Leopoldina Lobo, nome muito comum na época, Leopoldina, por ser o da imperatriz, que multiplicou Leopoldinas por todo o lado. A minha bisavó casou com um português, João de Brito Antunes, filho de um homem da região da Póvoa de Lanhoso, cujo pai, camponês pobre à beira da miséria, abandonou Portugal aos doze anos, a mando do pai dele, para fugir a um futuro de fome, o qual, após várias peripécias, se estabeleceu no Pará, e acabou rico com a borracha da Amazónia. De uma das últimas vezes que estive em Braga fui à Póvoa visitar as minhas raízes. Era domingo de manhã e não havia ninguém nas ruas, só eu a cheirar as raízes que tenho. E voltei para Braga, triste de não encontrar nenhum Antunes e com o sentimento de uma parte minha continuar ali. À saída abri a janela do carro, gritei
– Sou de cá
e senti o silêncio como uma bofetada injusta na cara. Leopoldina Lobo e João de Brito Antunes tiveram, entre outros filhos, o meu avô, António Lobo Antunes, uma das duas ou três pessoas que mais amei no mundo e que sei que mais me amou, tão parecido com as fotografias da mãe, moreno, bonito, diferentíssimo de mim
( – Só herdaste o meu nome
dizia ele)
a quem devo uma ternura
( – O meu netinho)
que mais nenhum homem me deu e me ensinou, de várias maneiras, a América Latina: deu-me a descobrir as irmãs da mãe (tia Marocas, tia Mimi, tia Biluca) então a viverem em Lisboa e que visitava religiosamente, comigo, todos os Natais, explicou-me que a América era muito fácil de decorar com uma simples frase: Cana dá e, com a dor, peru abana e mexe o cu, ou seja Canadá, Equador, Peru, Havana e México, cantava para eu adormecer
Mamãe
diz ao papai
que eu quero ir para a guerra
do Paraguai.
Não vá meu filho
que pode morrer
tão pequenino
o que irá acontecer.
Mostrou-me uma fotografia sua, com três ou quatro anos, a pedalar de triciclo numa fazenda do pai, falou dos terrenos que tínhamos no Rio e em São Paulo, o meu avô, já com cara de homem e feições de judeu, já tão parecido com a mãe, a avó Leopoldina, a quem o meu pai chamava Avó Chuta, da qual, fisicamente, não herdei nada, por ser loiro e de olhos azuis, todo a atirar ao lado alemão da minha avó. Sou uma mistura de raças quase tão colorida como uma paleta, juntando-lhe a minha mãe que era portuguesa dos quatro costados. Em casa do meu avô, que nunca vi pegar num livro e, quando soube que eu escrevia, ficou a pensar, preocupadíssimo, que era capaz de vir a ser maricas, só havia obras brasileiras do século dezanove: Alencar, Machado, Aluízio Azevedo, Raúl Pompeia, Monteiro Lobato, Ruy Barbosa, uma porção deles que só eu lia, encantado e confuso. Teve que explicar-me o que foi a guerra do Paraguai, ou o que era a Amazónia onde os Antunes passaram a endinheirados graças à borracha, quem era o patriarca dos Lobos, o avô Bruno Álvares Lobo, pai da Avó Chuta, que não sei se encontrou, teve que contar-me que em tempos recuadíssimos se mandava tratar da roupa a França e se ia, todos os anos, de águas, a Vichy, e eu espantado de ter aquela resma de gente em cima de mim, cheia de carrapitos, bigodes, vestidos estranhos, barbas, bengalas, uniformes: foi assim precisa tanta criatura para eu nascer? E sentia-me importante por aqueles todos se unirem até desembocarem em mim. Às vezes, no Natal, parte da família brasileira vinha a Lisboa e o meu avô tão contente. Uma tarde, tinha eu cinco ou seis anos, fiz chichi da varanda de um segundo andar para a rua e estava todo ocupado naquela operação quando uma das minhas primas cariocas, por que estão quase todas no Rio agora, viu-me de costas, veio espiar e gritou para dentro
– Mamãe, Antônio está com o negociozinho dji fora
o que provocou um pequeno escândalo na sala, excepto no meu avô, a rir-se de feliz por o seu morgado, palavra que se usava no ?Pará para indicar o descendente macho mais velho, o herdeiro, o qual, ainda por cima, tinha o nome dele, António Lobo Antunes, feliz por o seu morgado ter um negociozinho, não fosse haver nascido, horror dos horrores, sem negociozinho nenhum. Lembro-me disto com uma nitidez absoluta, o morgado a mijar perante o escândalo da parentela e o orgulho do meu avô, então o morgado em exercício. ?À mesa sentava-me ao seu lado, pequeno, e acariciava-me o pescoço. O meu morgado, dizia ele, feliz, o meu morgado. Quando fiz dezoito anos, dois meses antes da sua morte, abriu a última garrafa, que guardava para o efeito desde o meu nascimento, vinho do Porto com o nome do avô Bernardo Antunes no rótulo, o fundador da dinastia de negociozinhos que culminou no meu e que tive de guardar à pressa entre ralhos de tias, uma coisinha pequenina, cor de rosa, que lhe assegurava a continuação de família. Ele ficou orgulhoso, eu fiquei de castigo na cozinha, a comer a cocada da minha tia Isabel, sua irmã, que ele adorava. E lembro-me igualmente das suas palavras
– Já não vamos morrer
comigo a perguntar-me porque carga de água aquela porção minúscula de mim os impedia a todos de morrer. De modo que passei a tomar imenso cuidado com uma insignificância a que não ligava nenhuma. O avô Bernardo Antunes quis vir acabar em Portugal, ao sítio onde nasceu. Talvez para se certificar do cemitério, na zona da Póvoa de Lanhoso, que eu conservava o negociozinho em condições. Quando lá fui era de manhã muito cedo, domingo ainda por cima, sem ninguém nas ruas. Então tirei-o para fora, gritei, para que o avô Bernardo ouvisse
– Não perdi o negociozinho, está aqui
e já no carro, para me vir embora, pareceu-me escutar um suspiro de alívio atrás de um bigode branco.