O título acima ocorreu-me ao lembrar-me da primeira campanha presidencial de Ramalho Eanes, em 1976. Em reunião da comissão política, a que eu pertencia, entendeu-se que era um slogan eleitoral adequado para, após o turbulento período do PREC, transmitir a ideia da desejada normalização democrática: assim, por cima da foto de Eanes, lá apareceu num cartaz – “Viver a liberdade em segurança.” E, quase meio século depois, creio que a ideia e a frase continuam a ter a mesma relevância: o exercício efetivo da liberdade, valor supremo, exige segurança, e a segurança, para ser um valor e não um pretexto para a violência ou a ditadura, exige liberdade.
Como em tantos outros domínios, porém, há ou pode haver uma certa conflitualidade conceptual e em situações concretas, o que torna muito difícil legislar a tal respeito. Do que resulta um normativo muito “aberto”, que não dá resposta precisa às questões mais graves. Assim, a boa decisão dos casos depende de um adequado juízo de proporcionalidade dos interesses em jogo e da “sabedoria” – inteligência das coisas, bom senso, experiência de vida, intuição – do julgador.
Creio ser neste quadro que se põe também a potencial conflitualidade entre o direito à segurança e diversos outros direitos. Sendo estes, tradicionalmente, mais conotados com a esquerda, e aqueles com a direita. Como salienta Cunha Rodrigues no último JL, Jornal de Letras, “uma expressão das conceções iliberais é a neocriminalização e o endurecimento das políticas de segurança”.
Mas a realidade é mais complexa. E quem defende a democracia numa perspetiva progressista, como é o meu caso, não se deve deixar capturar por uma falsa antinomia. Os democratas em geral, e a esquerda em particular, seriam pouco inteligentes – como demasiadas vezes têm sido… – se deixassem para a direita, e para a extrema-direita que cada vez mais a vai dominando, o lugar de “campeões” no combate à criminalidade, da mais violenta à mais corriqueira; se absolutizassem, ou por norma privilegiassem, face à segurança, valores como a “reserva da intimidade da vida privada e familiar”, a inviolabilidade de “domicílio e sigilo da correspondência ou outros meios da vida privada” (art.os 26, 1, e 34, 1, da Constituição.)
Ora, foi por entender violarem estes preceitos que o Tribunal Constitucional decidiu, em 2022, declarar inconstitucionais as normas de 2009 que, transpondo para a ordem jurídica interna uma diretiva europeia, obrigaram as empresas de telecomunicações a guardarem durante um ano, para eventuais investigações criminais, dados relativos a chamadas telefónicas: dia, hora, duração, número de destino e localização dos aparelhos. Tal decisão impossibilitando ou dificultando muito várias daquelas investigações, tornando nulas outras, ou mesmo levando à revogação de sentenças judiciais já proferidas – como agora aconteceu com a anulação, pela Relação de Évora, da condenação de 11 dos 23 arguidos no caso do roubo de armas em Tancos.
No rol das nefastas, se não escandalosas, consequências de tudo isto avultará, segundo especialistas, a dita impossibilidade ou dificuldade de investigar com sucesso muitos casos de pedofilia/pornografia infantil. Mas não só. Caso recente, absolutamente inadmissível, é o de um juiz que recusou o acesso ao registo de localização do telemóvel de uma menor que se temia haver sido vítima de rapto!
E sublinhe-se que o que aqui está em causa não é a violação do sigilo de um telefonema, pois não há acesso ao seu “conteúdo”, antes apenas às circunstâncias acima referidas. Cujo conhecimento, com razões justificadas, em minha opinião, poderá nem violar os citados preceitos constitucionais. Mas esta seria outra conversa. Agora o que se impõe e urge é legislar, o que está em curso no Parlamento, de forma clara, inequívoca, eficaz, para pôr termo à atual situação; não facilitar a prática ou a impunidade de crimes concretos em nome do que não o justifica; hierarquizar com inteligência e bom senso os valores em jogo – e que afinal nem estão em confronto, antes devem ser complementares.
À MARGEM
O Tribunal Constitucional, de que se fala aqui ao lado, tem atualmente em funções três dos seus 13 membros cujo “mandato” já terminou, um deles há mais de um ano. São os três juízes cooptados (os outros dez são eleitos no Parlamento, por maioria qualificada de dois terços), que se mantêm por falta de entendimento entre os seus pares sobre quem deve substituí-los… Não parece uma situação desejável, nem dignificante. E quando houver uma revisão constitucional, espero que a sua composição venha a ser alterada no sentido que pela minha parte sempre defendi, e que passa por uma parte dos juízes, embora minoritária, ser designada pelo Presidente da República.
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