Na lista das atuais reivindicações dos professores começa a surgir (embora não se encontre no topo das exigências prementes) também o desejo de regresso a uma gestão democrática das escolas. Por outras palavras, muitos dos professores de Portugal gostariam de ver extinta a figura do Diretor que, por estes dias, na maior parte dos casos, se limita a receber e a fazer cumprir ordens da tutela sem requerer, da parte dos seus executantes, qualquer atitude reflexiva. Pior ainda, quando se pede aos professores uma participação ou discussão sobre um determinado tema, raro é o caso em que as suas propostas são realmente aceites. De tal modo que já corre pelas escolas, entre os docentes sem assento no Conselho Pedagógico, a ideia de que fazer propostas de mudança/melhoria nas atas das reuniões é mera perda de tempo, chegando a pôr-se em causa a sua utilidade.
Ora, neste contexto de descredibilização por quem diariamente trabalha nas escolas e se vê obrigado a acatar ordens desprovidas de utilidade comprovada para a melhoria das aprendizagens dos alunos, é cada vez maior o número de professores que gostaria de ver substituída a figura do Diretor por um Conselho Diretivo/Executivo eleito efetivamente de forma democrática, constituído por primus inter pares na verdadeira aceção do termo. Mais importante: que esse Conselho Diretivo fosse constituído, na sua maioria, por quem conhece as especificidades da sala de aula. Sabemos que a escola não é feita apenas do que acontece na aula mas é sobretudo nela que a escola acontece… podendo ser este um dos fatores de onde depende a qualidade da atmosfera de uma escola. E, em boa verdade, a maioria dos diretores das escolas portuguesas – NÃO TODOS, felizmente – são meros gestores de uma empresa estatal que há muito perderam o verdadeiro elo com as vicissitudes e as singularidades desse espaço único da escola onde praticamente tudo se mistura, do ensino à aprendizagem, dos saberes às emoções, das experiências individuais às coletivas, dos valores aos afetos, das atitudes aos estímulos, da tristeza à alegria, da frustração ao orgulho… E citando o que um colega reflexivo afirmava há dias, quando o modelo de organização empresarial entra nas escolas, é a escola enquanto micro democracia e espelho cívico da sociedade que fica a perder.
Um pouco de história ajudar-nos-á a compreender a razão deste desejo de voltar à gestão democrática das escolas públicas que se começa a fazer sentir. Antes da Revolução de 1974, as escolas eram regidas por um diretor ou reitor diretamente nomeado pelo ME do Estado Novo, ou seja, de acordo com critérios de confiança política. O centralismo burocrático era forte com um controlo apertado no que se refere ao currículo, à gestão dos professores e dos alunos e até mesmo do processo de ensino-aprendizagem. A autonomia das escolas era inexistente assim como a participação dos professores, pessoal não-docente e alunos na tomada das decisões. Entendia-se a escola como um meio para exercer o controlo político e ideológico.
Nos anos seguintes, aquando do inevitável caos vivido nas escolas, a autogestão foi a única forma encontrada de libertação após décadas de funcionamento retrógrado e o caminho da gestão das escolas públicas, que se tem feito caminhando, até hoje ainda não foi encontrado. Durante muito tempo, as escolas foram geridas por um Conselho Diretivo/Executivo, constituído por professores que, de uma forma mais democrática, tomavam em mãos todos os assuntos das escolas e se sentiam representantes das mesmas (dos professores e dos funcionários) perante a tutela. E sempre que havia reuniões no Ministério da Educação, defendiam os seus interesses com unhas e dentes, reflexo do sentimento do grupo que os elegia.
O Diretor dos estabelecimentos públicos portugueses de educação pré-escolar e do ensino básico e secundário, enquanto órgão unipessoal de administração e gestão, foi instituído pelo Decreto-Lei nº75/2008 e corresponde hoje ao organismo de governação das escolas públicas. Ainda que permaneça alvo de controvérsia velada pela gestão não democrática que implica, a maior parte dos professores das escolas que entretanto passaram a agrupamentos aceitaram a existência da figura do diretor escolar sem a questionar. A sua eleição passou a ser da responsabilidade do Conselho Geral e hoje, o Diretor Escolar transformou-se no representante do Ministério da Educação nas escolas, respondendo diretamente aos diretores regionais. Esta relação de proximidade entre quem dirige as escolas e o poder instituído tem provavelmente contribuído para a cada vez menor capacidade de contrariar deliberações da tutela, consideradas por todos perfeitamente absurdas, mas que são apresentadas aos professores como facto consumado, contra o qual nada podem fazer.
A intenção declarada do legislador era, como se pode depreender, impor formalmente e sem margem para escolha, a partir de 2008, a gestão unipessoal materializada na figura do Diretor. Por outro lado, e não bastando ainda, os diretores escolares têm a possibilidade de ocupar o cargo durante quatro mandatos de quatro anos consecutivos (encontramos diretores de escolas que já se encontram no exercício de cargos de gestão há mais de 20 anos, muitos deles na mesma escola) e, para tal, pode nem ser necessário muito trabalho. Basta escolherem com acuidade os membros a eleger para o Conselho Geral e praticamente conseguirão ver a sua eleição garantida. Obviamente que os professores votam nas listas existentes para o Conselho Geral das escolas. O que os professores não possuem é a possibilidade de dizer: eu quero fazer parte do Conselho Geral porque estes elementos são convidados – por quem de direito – a entrar (e também a sair).
O agrupamento de escolas, já previsto na Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986 e no Decreto-Lei nº 115-A/98, veio mais tarde com o Regime de Autonomia, Administração e Gestão das Escolas (Decreto-Lei nº75/2008) regulamentar a reordenação da rede escolar. A criação dos mega agrupamentos foi a machadada final na vida democrática das escolas. Perdeu-se a identidade, a coesão, a cultura de cada instituição e a possibilidade de os docentes poderem trabalhar livremente, com a motivação necessária para ensinar. E depois de tantas alterações que os professores foram obrigados a cumprir sem serem ouvidos, o grande tema entre os profissionais do ensino na sala dos professores passou a ser a contagem dos anos de serviço que ainda faltam para a reforma.
Com o atual modelo de gestão, as escolas correm o risco de cair na esfera de influência dos órgãos locais do poder estatal – os municípios – e dado o caráter centralizador do nosso sistema educativo, os aspetos essenciais continuarão dependentes dos órgãos centrais visto a autonomia de que tanto se tem falado não passar de uma quimera… O que cada vez mais se nota é a vontade de transformar a escola numa empresa quando, como nos diz Nuccio Ordine no seu livro A Utilidade do Inútil (2013), a lógica da educação não é a do Mercado ou a do Lucro. O princípio da educação é aprender a ser melhor para si próprio e para os outros…
Poderemos encontrar neste rol algumas das causas da insatisfação que têm levado milhares de professores para a rua e que, nestes últimos dias, reclamam por um movimento coletivo de diretores que possa, em última instância, apresentar a sua demissão em bloco junto do ME e, assim, mostrar que está ao lado dos professores e não contra eles? Os Diretores Escolares deveriam ser, aos olhos dos professores, verdadeiros líderes transformacionais que, em conjunto com o seu corpo docente, conseguissem encontrar soluções inovadoras para os problemas que diariamente se nos colocam. Porém, o que muitas vezes acontece é vermos estes mesmos Diretores replicarem fórmulas anacrónicas emanadas da tutela, atuando em algumas escolas quase como senhores feudais, com uma enorme dificuldade em aceitar ideias inovadoras. As escolas portuguesas, mais do que nunca, precisam de Diretores que favoreçam a mudança e que a não temam.
Numa outra dimensão ainda que dentro do mesmo Ministério da Educação, a 22 de abril de 2022 foi aberto concurso para os cargos de diretores da Escola Portuguesa de Moçambique _ Centro de Ensino e Língua Portuguesa e da Escola Portuguesa Ruy Cinatti em Díli. Estas escolas terão, como todas as escolas, singularidades e fragilidades, necessitando estas últimas de ser debeladas. Porém, quem tiver como função dirigir uma escola portuguesa no estrangeiro deverá ser, acima de tudo, alguém com conhecimento da complexa e híbrida realidade em que estas escolas se inserem, com provas dadas em projetos pedagógicos e de cooperação, sem esquecer a capacidade de estabelecer relações multiculturais e institucionais, privilegiando ainda as relações interpessoais e o melhor clima de escola possível.
Por outro lado, a formação especializada como condição para admissão a concurso para diretor pode nem sempre ser garante da qualidade dessa gestão. Como mostra o inquérito de opinião aplicado pela Federação Nacional dos Professores, em 24 575 professores inquiridos, 19 393 (78,9%) concordaram que os candidatos ao órgão de gestão devem ser selecionados pela sua competência e não pela sua especialização.
No momento particular de insatisfação social que se vive, com a Educação a atravessar uma profunda crise em que milhares de professores portugueses saíram à rua a exigirem respeito e dignidade, não seria também a hora do Ministério da Educação garantir a lisura dos concursos públicos, evitando situações dúbias que em nada dignificam a já debilitada imagem deste ministério junto dos profissionais que tutela? O que se passa, afinal, quando candidatos aos cargos de Diretor em Escolas Portuguesas no Estrangeiro apresentam atos de pronúncia, avançando com providências cautelares contra o Ministério da Educação?
Além disso, como se justifica que os critérios constantes no aviso de abertura destes procedimentos concursais sejam completamente diferentes face aos concursos anteriores para os mesmos cargos noutras Escolas Portuguesas no Estrangeiro? São várias as questões para as quais importa encontrar resposta. Porém, é facto que depois de terem funcionado com Comissões Administrativas Provisórias, garantindo o funcionamento durante anos tão difíceis como os vividos durante a pandemia, estas escolas mereceriam certamente um procedimento concursal transparente que, pelo menos, respeitasse aqueles que a têm gerido.
Este parece ser mais um concurso minado de incongruências e de irregularidades cujo final pode não estar ainda à vista. É hoje nítida a existência de uma tensão entre os princípios democráticos que deviam, a nosso ver, reger a eleição de um diretor escolar, e os princípios da eficácia e eficiência que se espera da sua gestão. Porém, depois de uma reflexão sobre estas problemáticas tão importantes para a saúde democrática da escola portuguesa, várias perguntas ficam no ar…
Reger-se-ão os critérios para seleção e eleição de um diretor escolar apenas e só pelo que é anunciado no decretos-lei que os anunciam? Estará a eleição democrática e colegial dos órgãos de gestão das escolas definitivamente posta de parte? Teremos perdido as emblemáticas conquistas docentes de abril? A eleição de um diretor escolar ter-se-á transformado novamente num mero cargo político?
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