Na segunda-feira, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, tornou-se o segundo dirigente político de topo a deslocar-se ao Qatar, para assistir a um jogo da Seleção Nacional de Futebol. A segunda figura do Estado voltou a vestir o seu fato de ex-ministro dos Negócios Estrangeiros para vir pôr água na fervura dos “mal-entendidos” diplomáticos entre Lisboa e Doha, depois das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa que, pressionados pelas “discussões de rede social”, resolveram, defensivamente, proferir declarações críticas sobre o regime qatari, como se fossem comentadores, em vez de detentores de sensíveis cargos políticos. Santos Silva, talvez numa combinada operação de apaziguamento com Doha, elogiou as autoridades daquele país, por terem sido inexcedíveis na assistência a Portugal em duas crises recentes: aquando da morte, no seu posto, por ataque cardíaco, do embaixador português naquele país, Ricardo Pracana, e por ocasião da evacuação de cidadãos portugueses provenientes do Afeganistão, por via aérea.
A deslocação de políticos ao Qatar para assistir aos jogos da seleção deve ser colocada em três planos: o humanitário, o da diplomacia e o das exigências de função. Vejamos o primeiro. Portugal tem por obrigação – e vocação – respeitar os direitos humanos e denunciar qualquer situação em que eles não sejam respeitados. Quando os prevaricadores são outros países, ou regimes, as posições portuguesas devem, em princípio, ser concertadas com as da União Europeia e não virem em declarações avulsas sob pressão de um comentariado político excitado. E não devem ultrapassar os limites do interesse nacional em manter o diálogo com o número mais alargado possível de países, sobretudo, como é o caso, quando existem estreitas relações económicas. Esta vocação de país fazedor de pontes é que esteve na base da eleição de um secretário-geral da ONU português… E entramos no segundo ponto, o da diplomacia: a realpolitik exige, legitimamente, que mantenhamos relações mesmo com os países onde os direitos humanos, tal como os entendemos, não são respeitados. Exemplo máximo, o da China, tendo em conta o relacionamento histórico e a posição de Macau. Por isso, as declarações de Marcelo e de Costa são irresponsáveis. Se queriam ir, que fossem. Mas sem querer ficar bem com Deus e com o diabo. Terceiro ponto: a presença dos líderes políticos nos jogos é mesmo uma exigência de função? A resposta é um rotundo “não”. Na prática, o que acontece é que Presidente, presidente da AR e primeiro-ministro se deslocam ao Qatar para ver a bola, à conta do erário público. Isto pode parecer demagógico, até populista, mas a realidade é que o populismo começa pela própria presença desnecessária da maior representação política, em Doha, entre os países que disputam o mundial. A crítica deve ser feita, em primeiro lugar, não pela alegada caução a um Estado que não respeita os direitos humanos (ninguém acredita que Marcelo ou Costa caucionem uma coisa dessas), mas pela bacoquice. Se querem ir, paguem do seu bolso. A presença de um alto dirigente do Estado, de preferência apenas um, o PR, só se justifica numa final. Ou na abertura, quando se trata de um país anfitrião. De resto, não só não serve para nada como expõe o País ao ridículo. Feitas as contas, os prejuízos derivados da presença dos nossos políticos no Qatar já ultrapassam, em muito, os seus benefícios.