Fixe este número: 15. De acordo com um estudo de Mariana Lopes da Fonseca divulgado, na semana passada, pelo jornal Público, um candidato incumbente nas eleições autárquicas em Portugal parte para a corrida eleitoral, em média, com 15 pontos percentuais de vantagem sobre qualquer dos seus adversários.
O estudo só quantifica um fenómeno que qualquer um de nós já intuía que existisse. E que se tem, aliás, traduzido em estatísticas como esta: em 2013, 83% dos candidatos a presidente de câmara que se recandidataram foram reeleitos (não encontrei estatísticas para 2017), sendo que foi esse mesmo fenómeno que esteve (felizmente) na origem da lei da limitação dos mandatos autárquicos, sem a qual estaríamos efetivamente condenados a aceitar autarcas vitalícios em boa parte do País.
Há, como é óbvio, uma explicação tão benigna quanto cândida para este tipo de resultados: os candidatos incumbentes, além de beneficiarem de um natural efeito de notoriedade, estariam, em muitos casos, a ser premiados pelos seus bons desempenhos à frente das suas autarquias. Muito bem. Sucede que consigo também pensar em explicações mais perversas. Uma delas é esta: os autarcas incumbentes beneficiam do acesso que têm a recursos públicos para fazer destes importantes armas eleitorais. O que, a ser verdade, faz desta prática ancestral do caciquismo um fator de bloqueio efetivo ao que devia ser o livre acesso a cargos eletivos.
Pois bem. A enunciação desta simples possibilidade (e possibilidade é aqui, convenhamos, um mero eufemismo) torna particularmente relevante a discussão sobre a utilização do PRR como arma de combate político nestas autárquicas. O que o primeiro-ministro está a fazer (e não é por acaso que escrevo primeiro-ministro e não secretário-geral do PS), ao sugerir, mais ou menos subliminarmente, que os fundos europeus serão prioritariamente aplicados em autarquias dominadas pelo PS, é contribuir para criar mais um bloqueio na nossa democracia. Se seria sempre difícil desalojar um presidente da câmara em funções (e este ano recandidatam-se mais de 80% dos atuais presidentes de câmara), apear um autarca do PS passa a ser, para todos os efeitos, uma tarefa absolutamente hercúlea.
Entendam-me bem. Estou longe de achar que o PS tem o monopólio deste tipo de práticas. Não é essa a minha guerra. O que quero sublinhar é que estamos muito longe de ter, ao nível autárquico, o modelo de uma democracia perfeita. Não que tenha qualquer dúvida sobre a contabilização dos votos. Muito menos porque duvide da importância crucial de umas eleições com uma proximidade e uma tangibilidade únicas. Mas porque tenho bem claro que o condicionamento efetivo do acesso aos cargos eletivos é uma forma de desvirtuação democrática tão lesiva como qualquer outra.
Os números falam por si. A menos que acreditemos que em cada um dos autarcas reeleitos há um autarca modelo, temos toda a razão para estar preocupados. E temos toda a obrigação de nos indignar com práticas que, ao invés de combater tiques de caciquismo ancestrais, os solidificam e perpetuam.
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