Passámos mais um verão com o vírus do SARS-CoV-2 entre nós. Houve quem previsse algumas tréguas nos períodos do ano mais quentes, como se também ele fosse de férias e nos desse algum descanso. Pelos vistos as coisas não serão bem assim, pois este ano a situação epidemiológica foi, aparentemente, bem pior do que no ano passado. De facto, e até meados de setembro de 2020, o vírus manifestou-se numa primeira vaga, modesta como depois se percebeu, de março a maio, tornando-se residual depois, até ao reinício das aulas. Gerou-se a partir daí uma onda imparável, apenas aliviada temporariamente no início de dezembro e logo retomada em força no princípio deste ano. Tivemos, por isso, um verão de 2020, calmo, com valores modestos em todos os indicadores que importam (número de casos, internamentos e óbitos). Os portugueses, com todos os cuidados e recomendações de saúde pública, fizeram as suas férias receosos, reduziram deslocações e não passaram por especiais dramatismos. As medidas de confinamento foram substancialmente retiradas e as coisas correram bem.
O que ocorreu neste verão de 2021 foi substancialmente diferente, depois da situação traumática e grave vivida, sobretudo na 3ª vaga, mas já com um desenvolvimento apreciável do processo de vacinação. Se, por um lado, tínhamos a experiencia de ter de lidar com um vírus poderoso e que tinha deixado um rasto de mortalidade assustador, por outro lado, passamos a ter disponível, em tempo record, uma arma poderosa para o combater – as vacinas. Nesta duplicidade de sentimentos, de medo do vírus e de confiança nas vacinas, os portugueses e também os órgãos de decisão politica, passaram a encarar a pandemia com menos gravidade, aliviando gradualmente medidas de confinamento e contribuindo, assim, para um verão mais distendido e normalizado do que no ano passado.
Fazendo um balanço comparativo entre estes dois verões, vividos em contextos bem diferentes, talvez percebamos melhor as razões para esta aparente normalização:
1. O número de novos infetados
O verão de 2020 foi vivido com um número muito baixo de casos diários de COVID, numa média, entre 1 de julho e 31 de agosto, de 256 novos infetados. Pelo contrário, em 2021, estivemos num planalto correspondente à 4ª vaga, que ainda persiste, de 2555 novos casos por dia, ou seja, um valor 10 vezes superior ao ano anterior, para período homólogo. Esta realidade, tão pronunciadamente díspar, faria supor um conjunto de medidas ou de comportamentos muito mais cautelosos este ano. Mas não. Convivemos hoje melhor com o vírus, temos cerca de 15 milhões de vacinas administradas e cerca de 6 milhões de portugueses completamente vacinados, o que faz toda a diferença em termos de normalização da vida social e da confiança dos cidadãos. Os restaurantes estão cheios e os hotéis também, designadamente nas zonas mais turísticas, e a economia parece rumar para a plena atividade.
2. Os doentes mais graves
A gravidade ou complexidade dos doentes mede-se muito pela necessidade de recurso ao internamento hospitalar. Também aqui, e até por força da escala maior de doentes que tivemos neste verão, o número médio de doentes internados nos hospitais foi bastante superior em 2021, face a 2020, na casa dos 85% (405 camas diariamente ocupadas em 2020 e 751 em 2021). Mas importa dizer que, enquanto o número de casos subiu em período homólogo 10 vezes, o número de casos a necessitar de internamento não chegou a duplicar, o que revela bem o menor impacto do vírus na saúde dos infetados. O mesmo se passou nas unidades de cuidados intensivos, com a ocupação constante de cerca de 52 camas no verão de 2020 e de 163 em 2021, ou seja, o triplo do registado no ano anterior. Embora revelando valores mais elevados, mesmo aqui muito longe da escala verificada no número diário de novos casos. Em conclusão, os internamentos de casos de COVID, embora superiores no verão de 2021, foram, em proporção, substancialmente inferiores aos verificados no verão de 2020, atendendo ao universo de infetados registados em cada um dos anos. A gravidade geral dos casos foi significativamente menor e o trabalho para o SNS muito mais fácil de controlar.
3. A letalidade do vírus
O número de óbitos registado no verão de 2021 foi cerca de 2,5 vezes superior ao verificado em 2020 (julho e agosto). Tivemos uma média de 3,78 óbitos por dia em 2020 e 10,0 em 2021.Mas quando relacionamos os óbitos com o volume de infetados retiramos a conclusão de que em 2021 a taxa de letalidade do vírus foi muito inferior: 0,40% em 2021 e 1,54% em 2020. Ou seja, neste verão, na sequência aliás da menor gravidade dos casos, como vimos, a letalidade do vírus foi muito inferior.
O peso relativo dos idosos na mortalidade reduziu-se entre o verão de 2020 e de 2021, com as pessoas com mais de 80 anos a representarem 62% e 56% dos óbitos, respetivamente. Em contrapartida, a importância relativa dos óbitos na população entre os 40 e os 70 anos subiu de cerca de 9% para perto dos 19%.
A letalidade do vírus baixou também significativamente entre a população infetada com mais idade. Nas pessoas com mais de 80 anos, entre o verão de 2020 e o de 2021, o número de infetados que faleceu diminuiu de 14% para 9%, e entre a população na faixa etária dos 70/80 anos essa taxa baixou de 6% para 3%.
4. A idade dos infetados
Um dos pontos mais diferenciadores da casuística do vírus nos dois verões em análise, prende-se com a alteração substancial da sua incidência por grupos etários. No verão de 2020, o número de infetados com mais de 70 anos representou cerca de 13% dos novos casos e em 2021 apenas 5,6%. Pelo contrário, os infetados com menos de 40 anos em 2020 representavam 50% do total e no verão de 2021 representaram mais de 70%. Estas profundas alterações repercutiram-se necessariamente na gravidade dos doentes, agora com populações mais novas a serem infetadas, com sintomas ligeiros e de evolução positiva e rápida. Refira-se, a propósito, que os jovens com menos de 20 anos tinham um peso de 13% no volume de novos casos no verão de 2020 e, neste, estiveram perto dos 30%. Uma nota sobre os mais idosos (acima dos 80 anos): representaram 7% dos infetados no verão de 2020 e apenas 2,6% este ano, pelo que a prioridade dada a esta faixa etária, na vacinação, foi decisiva para este bom resultado.
5. A importância da vacinação
Parece evidente que o acontecimento decisivo para a alteração de contexto desta pandemia neste verão foi a vacinação. No verão anterior, com muito menos casos, a segurança sentida era menor e a vida social parecia muito mais condicionada. As vacinas e a forma bem-sucedida como ultrapassamos as primeiras dificuldades, no planeamento e no abastecimento, criaram um clima favorável à confiança e ao otimismo generalizado que hoje se vive. Os mais idosos, antes o grupo etário mais flagelado, passaram a ter um peso muito mais baixo nos novos casos e com isso desceu também o número relativo de óbitos e em especial nessas faixas etárias.
A covid-19 irá continuar entre nós, com formas mais ou menos agressivas de expansão e de gravidade. Mas tudo se encaminha, como este verão demonstrou, para uma vida coletiva mais arejada, menos apreensiva e com menos vítimas. Esperemos que o início das aulas não nos traga más notícias e que o comportamento dos portugueses continue a ter o elevado sentido de responsabilidade a que se assistiu neste verão, tranquilo e retemperador.
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ÍNDICE SINTÉTICO DE GRAVIDADE DO SARS COV-2*
No decurso do mês de agosto a gravidade da COVID -19 em Portugal manteve-se em níveis de risco baixo, como acontecia já em julho. Nas semanas que decorreram entre 2 e 29 de agosto, o índice sintético de gravidade permaneceu abaixo de 1, ou seja, abaixo dos valores – limite aceitáveis. Saliente-se ainda a clara tendência de descida, passando do valor 0,9173 na semana de 2 a 8 de agosto para o valor de 0,7773 na semana de 23 a 29 de agosto. Neste mês, a dimensão com melhores resultados foi sempre o número de doentes internados e a que obteve os piores resultados, ultrapassando inclusivamente os valores máximos recomendáveis, foi a positividade dos testes realizados, traduzida em percentagem.
Na última semana (30 de agosto a 3 de setembro, dia em que escrevo) o resumo do índice sintético de gravidade da COVID -19 em Portugal é o seguinte:
.Índice global: 0,7239 (baixo risco);
.Tendência: descida;
.Cor do semáforo: verde;
.Dimensão pior: positividade dos testes;
.Dimensão melhor: número de doentes internados
*Metodologia apresentada no artigo publicado em 19 de julho p.p.com o título “Uma nova matriz de risco”
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.