As autárquicas ainda nem realmente começaram e já estão assombradas por uma série de desistências mais ou menos estrondosas. Há casos para todos os gostos, desde desistências por razões de saúde até desistências relacionadas com casos de polícia.
Não estando por dentro dos casos individuais, interessa-me sobretudo fazer uma reflexão sobre a natureza e o papel das estruturas partidárias nestes episódios. Desse ponto de vista, o caso de António Oliveira parece ser o mais paradigmático: um candidato escolhido pelo líder do partido (e melhor ou pior, para o caso pouco interessa) acaba torpedeado e expulso pela concelhia local, sendo que bate com a porta no meio de acusações graves, falando em “negociatas de empregos e de lugares” e invocando questões de “higiene”.
Devo confessar que (felizmente?) conheço mal o mundo das distritais e das concelhias dos partidos políticos. É, pois, possível que tenha preconceitos injustificados. Mas a verdade é que vou formando a impressão de que estas estruturas estão a transformar-se numa espécie de gatekeepers (recorro ao anglicismo porque não sei se lhes chame “guardiões” ou “porteiros”) da nossa democracia. É evidente que não estou a sugerir que o processo de voto nas eleições autárquicas não é democrático ou livre. O que estou a sugerir é outra coisa que é tão ou mais importante: que a escolha dos candidatos que se apresentam a eleições não decorre de um processo que seja, ele próprio, transparente, democrático e livre.
Julgo que falo pelo cidadão comum, se disser que pouco sei sobre a forma como efetivamente decorrem esses processos internos nos partidos. Não tenho qualquer capacidade de escrutiná-los. E nada me garante, portanto, que os candidatos que me apresentam para votar não sejam escolhidos numa lógica transacional obscura, pelos piores dos motivos.
Ora, convenhamos, uma democracia substantiva não se cumpre apenas com eleições livres no fim da linha. Tem também de ser garantida por uma real capacidade de acesso de qualquer cidadão à posição de putativo candidato. Ora é isso que, julgo, vamos efetivamente perdendo. Veremos, aliás, se em Gaia não acabará por ser o próprio líder da concelhia local que se proclamará candidato do PSD.
Esta é uma forma imperfeita e frágil de democracia. Escolhemos em liberdade, mas fazemo-lo com base num leque restrito de alternativas predeterminado por caciques erguidos à tal condição de porteiros da democracia. Esta é uma forma amputada de democracia a que convém dar uma resposta enérgica – seja tornando cada vez mais fácil o aparecimento de candidaturas independentes dos partidos políticos e dos seus caciques locais, seja tentando forçar uma efetiva democratização dos próprios partidos, por exemplo, organizando primárias para a escolha dos candidatos.
Infelizmente, como se vê pela trapalhada em curso e como se viu pelas queixas dos movimentos de autarcas independentes, estamos a regredir em vez de evoluir.
As eleições autárquicas têm todas as condições para serem uma das formas mais nobres de fazer acontecer uma democracia de proximidade verdadeiramente vibrante e mobilizadora. Fará algum sentido, quase 50 anos volvidos sobre o 25 de Abril, que nos resignemos a deixá-la imperfeita e capturada?