1 – Deve a direita mais tradicional, comprometida com os valores democráticos e liberais, sentir-se impedida (ou sequer condicionada) de se sentar a discutir o futuro do País com a direita autoritária e populista representada pelo Chega? Deve a dita direita (ou a esquerda, já agora) abster-se de ouvir e debater com quem, no seu seio, defenda ideias insultuosas, repugnantes ou simplesmente ignorantes e tontas? Em bom rigor, numa sociedade minimamente respirável, estas perguntas deviam ser escusadas. Infelizmente, vale a pena enunciá-las porque vale a pena voltar a responder-lhes. Vale a pena voltar a sublinhar a importância, para a sobrevivência de uma democracia substantiva e plena, de uma liberdade de expressão que não conheça outros limites que não sejam os que decorrem da transformação do discurso em incitação inequívoca e direta a ação criminalmente punível. Vale a pena voltar a lembrar que os processos não são irrelevantes em democracia e que é ao Tribunal Constitucional, e não às turbas das redes sociais erigidas em tribunais populares, que compete a definição do que são propostas e partidos políticos aceitáveis ou admissíveis. E vale a pena sublinhar tudo isto, porque são já indisfarçáveis os sinais de crescimento de uma cultura de cancelamento na sociedade portuguesa que é absolutamente incompatível com uma sociedade aberta.
2 – Mas se a legitimidade é incontestável, vale a pena, ainda assim, discutir também a “convenção das direitas” no plano da oportunidade ou mesmo da mera utilidade. Receio é que a conclusão seja, desta feita, bem diversa. Como ficou eloquentemente provado, como era aliás mais do que previsível, como é saudável que suceda, é impossível que brote um projeto político comum, ou sequer minimamente coerente, de cabeças e de partidos com valores e mundivisões tão radicalmente diferentes. Como muito bem afirmou Miguel Poiares Maduro, “de pouco serve unir todo o espaço não socialista, se as diferenças no seu seio forem tão ou mais graves do que as que nos separam do outro lado”. E assim sendo, a única coisa que poderia ter saído de um encontro desta natureza, e volto a parafrasear Maduro, seria “um projeto de poder que dispensasse um projeto para o País”. Talvez seja mesmo isso que alguma direita tem para propor. Mas convenhamos que, com a exceção dos que o integram, um mero projeto de poder dificilmente pode aspirar a ser mobilizador para o eleitorado. Se a ideia era galvanizar, a manta parece francamente curta. Dos dois dias, sobrou a imagem de uma direita entretida em guerras intestinas, ocupada a discutir a possibilidade e a impossibilidade de alianças extemporâneas, enredada na elevada discussão em torno de saber quem é mais musculado e quem é mais fofinho na oposição ao PS, e sobretudo empenhada dar uma centralidade ao Chega que, até ver, o partido não tem em termos de representação parlamentar.
A legitimidade, repito, é total e deve ser sublinhada. A utilidade é que parece ser rigorosamente nenhuma. Mas não será um liberal como eu a sugerir que não há um direito inviolável ao tiro no pé.
(Opinião publicada na VISÃO 1474 de 2 de junho)