Combater a corrupção sem dar centralidade ao seguimento do rasto do dinheiro é brincar ao combate à corrupção. Porque a corrupção é dinheiro a mover-se para conseguir vantagens. Podemos e devemos apurar as obrigações de declaração de património e de interesses de quem toma decisões em nome do interesse público. Podemos e devemos ter malha apertada no cumprimento de regras deontológicas estritas. Podemos e devemos criar regimes de incompatibilidades e de impedimentos que previnam a apropriação dos cargos públicos para benefício privado. Podemos e devemos fazer tudo isto e muito mais. Mas se não pusermos no centro legislação que permita seguir o rasto do dinheiro e se não dotarmos os seguidores dos meios para o seguirem efetivamente, então estaremos a frustrar tudo o resto e a permitir que os que se abotoam indevidamente com milhões continuem a rir-se do Estado e de nós todos.
É tão perverso e tão pernicioso lançar a lama de uma suspeita indiferenciada de corrupção sobre tudo quanto é gente como manter a resposta à corrupção realmente existente num patamar pouco mais do que formal e burocrático, sem dentes. Ambas servem o mesmo propósito: não combater eficazmente a tomada de decisões públicas a troco de dinheiro direto ou indireto, abdicar de combater a corrupção de milhões e limitar o combate à corrupção de tostões.
Sem meios humanos e técnicos para vencer os labirintos ardilosos montados pela corrupção – cujos beneficiários se mostram cada vez mais hábeis no recurso às passadeiras que a globalização lhes estende, como os vistos gold, os offshores ou a dissimulação em áreas blindadas da internet –, ela reinventa-se e ajusta-se camaleonicamente para passar incólume nos filtros da deteção de ilícitos. Sem instituições dedicadas exclusivamente à identificação de desconformidades entre o património declarado e o realmente detido pelos titulares de altos cargos públicos – a lentidão da entrada em funcionamento da Entidade da Transparência é um bónus imenso aos corruptos e aos que visam desacreditar a democracia –, o formalismo das declarações de património dos responsáveis políticos continuará a ser isso mesmo: formalismo.
Por isso, é ainda de legislação que se trata. O tratamento criminal do enriquecimento ilícito mantém-se manifestamente diminuído na ordem jurídica portuguesa. A sua ausência na proposta governamental de estratégia nacional de combate à corrupção é o mais sonoro dos silêncios. É conhecida a razão sempre invocada: a criminalização do enriquecimento ilícito é inconstitucional. Não tem de ser. A dificuldade de casar a criminalização da ocultação de riqueza com o princípio constitucional basilar da presunção de inocência não pode servir de álibi para manter o País sem essa ferramenta essencial ao combate da corrupção. Há seguramente fórmulas capazes de garantir aquele casamento, como a recentemente avançada pela Associação Sindical dos Juízes: fazer acrescer à obrigação de declaração do património que impende sobre os titulares de altos cargos públicos uma obrigação de justificação de incrementos patrimoniais. E, com isso, fazer acrescer ao crime de desobediência qualificada que resulta da não declaração, um crime de ocultação de riqueza que provém da não justificação, punível com uma pena entre 1 e 5 anos de prisão, além da perda desses incrementos para o Estado.
E não vale o argumento de que legislar agora sobre a ocultação de riqueza é legislar a quente. Como se tivéssemos descoberto a falta da criminalização do enriquecimento ilícito só com as curvas do processo Marquês. Não foi agora, foi há muito tempo, há tempo demais, que tomámos consciência de que uma lei que permita ir no encalço do dinheiro da corrupção é imprescindível. Não é, pois, por precipitação, mas, sim, por responsabilidade que se deve criminalizar a ocultação de incrementos de riqueza.
A democracia não pode ficar refém dos que a querem frágil para dela se servirem ou para a liquidarem. A ambos a democracia tem de tirar o chão. E, para isso, não precisa de inventar a roda. Basta seguir o rasto do dinheiro.
(Opinião publicada na VISÃO 1468 de 22 de abril)