Os objetivos da estratégia de compra de vacinas centralizada pela Comissão Europeia, acordada pelos Estados-membros (EM) estão agora comprometidos pelos atrasados nas entregas pelas farmacêuticas e o risco de não cumprimento de um plano de vacinação à escala europeia. O ritmo de vacinação da União está mais lento do que o dos EUA, Israel e RU, pelo que se a UE pretende ter, como planeia, 80% das pessoas com mais de 80 anos vacinadas até fim de março e 70% da população total em agosto, terá de resolver os constrangimentos das entregas de vacinas.
Von der Leyen tem estado debaixo de fogo. Mas há que avaliar a estratégia de vacinação proposta pela Comissão Europeia sob vários prismas, sem deixarmos pender a análise exclusivamente para o iminente atraso nas entregas. Olhemos para os fundamentos da estratégia. O objetivo primário invocado foi garantir, num mercado único, com livre circulação de pessoas e profunda interdependência económica e social, acesso às vacinas em condições de igualdade, segurança e eficácia em todos os países, com uma distribuição equitativa consoante a população de cada um. Em junho de 2020, os EM chegaram a acordo quanto a isto, delegando na Comissão Europeia a competência de celebrar Acordos de Compra Avançada (ACA) com as farmacêuticas. Vários foram realizados.
É de notar que a política de saúde é uma competência exclusiva dos EM, tendo a UE apenas a competência de auxiliar, com mecanismos de coordenação e entreajuda. Este acordo não altera essa divisão de competências garantida pelos Tratados. Foi autorizado pelos EM para este caso concreto e, mesmo assim, contém salvaguardas da autonomia nacional. Por exemplo, prevê que um EM possa desistir de celebrar o contrato final decorrente de um APA e, nesse caso, de poder encetar negociações separadas com as farmacêuticas. Por conseguinte, são falíveis as críticas que se baseiam em argumentos de excessiva centralização de competências da UE. A delegação desta competência na Comissão não só foi autorizada pelos governos nacionais, como prevê mecanismos de salvaguarda de autonomia estatal, como ainda não altera a disposição geral dos tratados de competência nacional na área da saúde.
A estratégia de vacinação é, em boa parte, financiada pelo Instrumento de Apoio a Emergência, um mecanismo existente na UE, que foi ativado pelo Conselho, por proposta da Comissão, e que permite usar o orçamento europeu para situações de crise como esta. Em contexto de profundo abalo económico na economia europeia, este instrumento, que mobiliza 2,7 mil milhões de euros, é também uma lufada de capacidade nacional para concretizar a vacinação.
Mas o que se espera daqui é muito mais do que intenções e predisposições. Efetivamente, os planos estão a sair gorados à Comissão de von der Leyen, que prometia uma estratégia de vacinação coesa e eficaz. Há já países que reportam centros de vacinação vazios, por falta de vacinas. As negociações da Comissão Europeia com as farmacêuticas foram mais demoradas do que as dos EUA e do RU, o que levou a que a efetivação das compras também tenha sido mais tardia. Na base desta demora parece estar a apontada “burocracia” de Bruxelas. Tal burocracia reveste-se, neste caso, de vários motivos: as cautelas da UE em efetivar compras antes de autorizações regulamentares da Agência Europeia do Medicamento, a negociação de preços mais baixos (afinal o orçamento europeu, com pouco mais de 1% do PIB da UE é bem mais magro do que o dos EUA – cerca de 20%) e a garantia de corresponsabilização das farmacêuticas por eventuais efeitos secundários das vacinas.
E aqui há questões que são estruturais. Se os governos nacionais, e seu eleitorado e opinião pública, têm sido relutantes em aumentar o orçamento europeu, não podem querer “omeletes sem ovos”. Por outro lado, terá pesado também na negociação da corresponsabilização, as repercussões políticas dos movimentos anti-vacinas e da própria tradição europeia na proteção do consumidor/cidadão. A preferência por padrões mais altos de regulação de bens de consumo é uma marca que distingue também a UE na celebração de acordos comerciais externos. E diga-se que os EM não se opuseram a esta abordagem, pois se, por um lado, estava em causa evitar que morressem mais pessoas por Covid-19, por outro, estava também acautelar que não morreriam por vacinas. Imperava a fiabilidade da vacinação.
Porém, terá havido também alguma inexperiência e interesse político na conclusão destes acordos. Apesar do grau de perícia técnica e experiência em negociação económica e internacional da Comissão, o facto de a saúde não ser uma competência da UE, não é das áreas mais experimentadas dos seus serviços técnicos. A real capacidade de produção das farmacêuticas não foi acautelada, por um lado, e por outro, aponta-se também, terá pesado a pressão de França e Alemanha para celebração dos acordos prévios, com intuito de encaixe financeiro nas suas empresas. Ressalta daqui também o secretismo dos acordos, condenável numa crise humanitária e económica como esta que vivemos. Nas trocas de acusações entre a Comissão e AstraZeneca, e as batalhas do Parlamento Europeu (PE) para aceder aos acordos, a Comissão Europeia teve de obter autorização das farmacêuticas para a divulgação dos mesmos. Se é certo que a UE não tem formalmente competências na área de saúde e por inerência o PE também não, mesmo tendo sido este acordo feito no domínio da cooperação intergovernamental, certo é também que o PE como instituição parlamentar é o escrutinador das decisões e atuação da Comissão e representante do interesse geral dos cidadãos. Acresce que, não só o orçamento europeu resulta de contribuições fiscais nacionais, como o momento de crise económica e o agravamento que se prevê torna politicamente justificável que haja um debate parlamentar, quer ao nível europeu, quer nacional, sobre os moldes de celebração dos acordos e contratos. Se a transparência deve ser a norma, exige-se ainda mais nesta conjuntura, na qual a Comissão e os EM falharam redondamente. E torna-se ainda mais fulcral tendo em conta o facto de algumas farmacêuticas terem recebido antecipadamente pagamento para concluírem investigação e condições para produção.
Mas foi então um erro a compra centralizada de vacinas na UE? É difícil responder com assertividade, porque estamos no domínio especulativo sobre o que aconteceria se cada Estado tivesse negociado sozinho a sua compra. Mas tendo a considerar que esta foi a melhor decisão, ainda que reconhecendo todos os erros processuais e políticos na sua concretização. Por um lado, evitou (ou tentou evitar) o nacionalismo das vacinas na UE, por outro permite uma capacidade negocial a cada Estado, que dificilmente a teria isoladamente. Conseguiriam os países da UE unilateralmente combater a estratégia inicial de Trump de açambarcamento das vacinas? É verdade que temos o exemplo de alguns países como Israel que negociaram sozinhos e estão na dianteira. Mas uma coisa é termos dois ou três Estados economicamente desenvolvidos a fazê-lo, outra é ter todos os governos do mundo desenvolvido com negociações paralelas com as farmacêuticas. Como é evidente a nível mundial, também na Europa as desigualdades económicas tenderiam a refletir-se na desigualdade de acesso a vacinas. Por outro lado, estaríamos nós, cidadãos e eleitores, dispostos a concluir acordos de compra de vacinas sem corresponsabilização das farmacêuticas por eventuais efeitos secundários?
Porém, estas alegadas vantagens não ilibam a UE do dever de ter concretizado uma estratégia de compra e negociação mais aberta, ponderada e politicamente participada e transparente para com as instituições deliberativas. Se agora é tempo de pressionar e criar condições para acelerar a produção de vacinas e distribuição equitativa, tanto a nível europeu como mundial, mais tarde será tempo de a UE refletir e aprender com os erros.