Assinala-se a partir de hoje a 52ª semana da SARS-CoV-2 em Portugal, ou seja um ano consecutivo sob o signo desta pandemia. A sua pegada deixa-nos já com cerca de 800 mil infetados (a segunda mais elevada taxa de contágio da Europa a 15, depois do Luxemburgo), 16 mil vítimas mortais e milhares de doentes internados. Façamos uma pequena viagem sobre este ano improvável, de luta contra o vírus, com sucessos e falhas, heróis e vilões, doentes que recuperaram, excesso brutal de mortalidade, recessão na Economia, encerramento de empresas e aumento do desemprego, interrupção nos diferentes graus de ensino e graves problemas de saúde mental.
1. A cronologia do vírus
Na 1ª semana (2 a 8 de março de 2020) tivemos uma média diária de 4 novos casos, sem internamentos e sem óbitos a registar. Agora, num período de tréguas que o vírus nos concedeu, estamos com uma média diária já abaixo dos 2000 novos casos, existência média diária de 4.200 doentes internados, cerca de 720 dos quais em cuidados intensivos, e perto de 110 mortes diárias. A situação é hoje muito diferente e o caminho até aqui foi feito de vagas sucessivas, cada uma pior que anterior.
a) A primeira vaga
Portugal foi dos países europeus que registou mais tarde o primeiro caso de COVID (a 2 de março), quando o Reino Unido, a França, a Itália ou a Espanha já lutavam contra o vírus desde janeiro. A informação que nos chegava era já preocupante e rapidamente fomos confrontados com imagens reveladoras dos seus efeitos devastadores noutros países (falência dos serviços de saúde, doentes críticos e muitos óbitos).
Ao 10º dia (com 195 novos casos por dia, 126 doentes internados e dois óbitos diários, tão pouco para os dias de hoje…) o Governo atuou, com rapidez e determinação, declarando o 1º confinamento, com o encerramento das escolas (12 de março), logo respaldado pela 1ª declaração do estado de emergência, por parte do Presidente da República, a 18 de março. Fomos dos países europeus que atuou mais precocemente para travar o contágio e os resultados apareceram.
A partir da 8ª semana, duas a três semanas após o início das medidas de confinamento, o vírus começou a ceder, achatamos a curva, e 15 dias depois foi decretado o primeiro desconfinamento (4 de maio), seguido de um segundo desconfinamento a 18 de maio. A incidência do vírus e as suas consequências para a atividade hospitalar e para os cidadãos tinham abrandado de forma consistente e significativa: menos 70% nos novos casos, menos 52% nos internamentos, menos 54% nos óbitos. Houve ainda um terceiro desconfinamento à 14ª semana (1 a 7 de junho) que envolveu a reabertura das grandes superfícies,o que veio a provocar uma ligeira retoma do vírus até meados de julho, mas com os valores de doentes internados e de óbitos bem controlados (menos de 500 doentes internados, cerca 70 doentes em UCI e entre 4 a 7 óbitos por dia).
A partir de 20 de julho e até ao final de agosto, tivemos um período relativamente tranquilo, com um número de novos casos diários entre 150 e 300, um número de internamentos na casa dos 350, com menos de 50 em cuidados intensivos, e uma média abaixo dos 4 óbitos diários.
a) A segunda vaga
A partir de 5 de outubro (32ª semana) assistimos a uma escalada imparável do vírus só travada no pico atingido à 38ª semana, com mais de 6200 novos casos diários, mais de 3000 doentes internados e 75 mortes diárias. Tinha sido, entretanto, e mais uma vez, decretado um novo estado de emergência a 8 de novembro e, como seria inevitável, o vírus, 15 dias depois, começou a ceder (39ª semana – 23 a 29 de novembro). Este processo de descida nos números da pandemia, com um confinamento soft, decorreu até à 43ª semana (21 a 27 de dezembro), semana a partir da qual se entrou, a todo o vapor, na terceira vaga, muito fruto das medidas de abertura excecionais adotadas no Natal.
b) A terceira vaga
De facto, naquela semana (43ª) atingimos cerca de 2900 novos casos diários, e os valores elevados do internamento davam sinais de redução. Mas o que a seguir aconteceu foi explosivo e não era de todo previsível. No final do mês de janeiro (cinco semanas depois) atingimos o valor inimaginável de mais de 16000 casos num dia, 303 óbitos, quase 7000 doentes internados, dos quais mais de 900 em cuidados intensivos.
Um novo estado de emergência, com medidas de confinamento mais assertivas, decretado a 18 de janeiro e reforçado no dia 22 com o encerramento das escolas, começou a produzir efeitos consistentes a partir de 1 de fevereiro, sendo hoje a pressão sobre os estabelecimentos de saúde bem mais controlável. Estamos já, nalguns dias, com menos de 2000 casos, um pouco mais de 4000 doentes internados, 700 dos quais em UCI, e cerca de 110 óbitos por dia. São ainda valores muito elevados, mas parece que conseguimos suster o vírus e os seus funestos impactos.
2. As lições a retirar
Nenhum país estava preparado para esta pandemia, como seria natural. As caraterísticas do vírus, a sua transmissibilidade entre humanos e os seus efeitos em termos de morbi-mortalidade eram desconhecidos. O vírus não escolheu as geografias mais desfavorecidas do planeta para atacar, e foram precisamente os países mais ricos do Ocidente que até agora sofreram os maiores impactos em matéria de saúde individual e coletiva. Não há ainda fármacos especificamente indicados para combater o vírus e testam-se sucessivas hipóteses de utilização off – label de fármacos já existentes, nalguns casos com aparente sucesso. Entretanto, as vacinas chegaram primeiro, embora ainda com baixo nível de efetividade. Também nenhum país dispõe de um armamento sanitário, em pessoas, instalações e equipamentos que possa responder à invasão catastrófica do vírus. Todos tentaram criar e improvisar respostas sempre crescentes, não regateando esforços para poder acorrer a todos os doentes. Nem todos conseguiram e os exemplos de Itália (seleção de doentes para ventilação) ou do Brasil (a dramática falta de botijas de oxigénio em Manaus) ficarão por muito tempo na nossa memória.
Portugal teve, globalmente, uma excelente atuação na primeira vaga: decisão política de confinamento precoce, com rápido achatamento da curva epidémica e contenção bem-sucedida dos internamentos, dos casos graves e das mortes. Apresentamos, de facto, dos melhores resultados a nível europeu, sobretudo nos óbitos, com taxas de letalidade próximas dos 2/4%, quando países próximos e com muito mais recursos do que nós, tinham taxas de 12 a 14%. Ninguém conseguiu até agora explicar este sucesso, e os investigadores terão aqui terreno fértil a explorar. Podemos colocar esta primeira vaga a crédito do Governo e, sobretudo, do SNS e dos seus profissionais, que sempre souberam responder com serenidade e competência.
O Governo começou a claudicar no mês de outubro, quando os números da COVID eram já insuportáveis e urgia tomar medidas de confinamento consistentes e mais severas. Mas só um mês depois resolveu atuar, mantendo todavia as escolas abertas. Os resultados positivos começaram a surgir em cima da semana do Natal e não houve tempo para que se consolidassem, pois a abertura para as festas natalícias deitou tudo a perder. Dois erros graves e sucessivos que foram determinantes para a explosão do pós-Natal. A questão das escolas foi objeto de muita discussão e controvérsia e só a 22 de janeiro o governo se decidiu pelo seu encerramento, quando já se percebia que as aulas não deveriam ter sido retomadas no regresso de férias. Este foi o terceiro erro.
A segunda e, sobretudo, a terceira vaga colocaram-nos nos piores lugares no ranking mundial da COVID, em incidência e mortos por milhão de habitantes, doentes internados e casos graves.
O Ministério da Saúde tem tido neste processo um papel de liderança, de combate e de informação que não tem sido fácil, mas tem, no essencial, cumprido a sua missão e tranquilizado a população. O SNS tem conseguido responder com sucesso aos doentes COVID, mesmo quando sujeito à grande pressão de dezembro e janeiro. Nenhum doente ficou para trás e foram manifestamente exageradas as notícias repetidas sobre medicina de catástrofe e a necessidade de um guia ético para decidir quem não tratar. Não foi preciso, embora o fosse realmente para decidir como atuar com os doentes não COVID, estes sim, que ficaram para trás, nos centros de saúde e nos hospitais: urgências, consultas, exames complementares, intervenções cirúrgicas, internamentos, sofreram reduções brutais em 2020, nalguns casos superiores a 40%. Não se sabe como estão e onde param estes doentes, mas o impacto a médio prazo desta incapacidade de atendimento vai, seguramente, provocar mais doença e mais mortalidade.
Em suma, a segunda e terceira vagas abalaram os alicerces do SNS, mas não o levaram ao colapso. As notícias que referiam desde a primeira vaga a rutura dos serviços, suportadas muitas vezes nas Ordens profissionais e nos sindicatos, não passaram de pressões, nalguns casos ilegítimas, em defesa de interesses corporativos e políticos que um dia iremos perceber melhor. Os partidos políticos que estiveram sempre a reclamar mais recursos para o SNS, mesmo quando tinham posições ou intervenções que favoreciam objetivamente o vírus, esqueceram-se que o maior e mais eficaz combate à SARS- CoV -2, se trava na prevenção da sua disseminação e não na sistemática injeção de recursos para tratar doentes. As maiores falhas registaram-se, precisamente, na Saúde Pública, esta sim carente de recursos e incapaz de conseguir dar resposta aos rastreios epidemiológicos, à medida que o número de casos aumentava. Os créditos, aqui, vão para os profissionais dos hospitais que, sem filtros a montante por parte dos cuidados primários, se desdobraram em horários alargados e extenuantes, e para as administrações que conseguiram sempre ir avançando com mais meios, mais camas e, no limite, com transferências em rede. Os sucessos destas operações que envolveram também o setor privado, INEM, bombeiros e forças de segurança, só foram possíveis com o trabalho constante e dedicado do ministério da saúde e dos seus titulares. Para além das falhas e dos erros cometidos neste percurso, em que os mais importantes tiveram natureza estratégica e não operacional, será bom reconhecermos a competência e a confiança reforçada que, um ano depois, temos nos nossos hospitais públicos.
O confinamento, como vimos, é a única arma eficaz que temos, antes das vacinas, para travar o vírus. Atuar de forma precoce e sem hesitações foi a melhor prática adotada pelos governos nesta crise. Os que o fizeram tiveram bons resultados e controlaram a progressão da pandemia.