Escrevo na manhã seguinte às eleições como se estivesse a acordar de uma ressaca sem álcool mas que me deixa, igualmente devagar, à procura do que encontrar no dia novo. “Lendemain de veille”, dizem os franceses, para o dia depois da festa, que deixa um gosto avinagrado na boca. Antes fosse.
Até devia estar mais aliviado: o candidato em que votei ganhou por larga maioria. Foi, sem espinhas, eleito à primeira, sem que mais nenhum tivesse chegado a concorrer de verdade ao seu lugar. E acabou a noite a fazer o discurso de Estado que o dia exigia e de que nós precisávamos. Mas ficámos por aqui. Tudo o mais pode ser novo, mas não é bom.
Aparentemente, há um vencedor: a manha de António Costa, que ficou gestor plenipotenciário da maioria parlamentar enquanto a legislatura resistir. O Bloco e o PCP, à beira do precipício, deram um passo em frente. Podiam ter usado, sem custo, a candidatura populista de Ana Gomes como desculpa para travar a batalha que contava, e teriam cantado uma certa vitória sobre Ventura. Nas circunstâncias, era o consolo que sobrava. Preferiram – há gostos para tudo – a humilhação de comprovar que representam, em conjunto, menos pessoas do que a direita autoritária.
Marisa Matias, candidata sempre disponível mas, até por isso, incapaz de articular o que quer que seja de novo ou cativante, conseguiu pouco mais que um terço dos votos da última vez, entregando, como todos adivinhavam, o resto a Ana Gomes.
João Ferreira, o próximo secretário-geral do PCP, acaba por ter menos votos do que Edgar Correia há cinco anos. A cada eleição, o partido encolhe e já não é sequer verdade que resistam os fiéis, como se comprovou em Setúbal e no Alentejo.
O fraco consolo de ter ficado à frente do Bloco até faz Costa dormir mais descansado com o seu atual entendimento. No limite do que a realidade permitir, vai ser dele a gestão de um Parlamento onde só precisa de quem tem medo de eleições.
A novidade, para lá do que se antecipava, o outro vencedor além de Costa no jogo partidário, é obviamente André Ventura. Multiplicou por dez o resultado com que se estreou há um ano e acabou a noite outra vez aos gritos, a insinuar um semigolpe de Estado a que chama “IV República” e a ameaçar diretamente o PSD.
Aí está outro dos resultados que Costa desejou e planeou. Se houvesse candidato plausível de esquerda, a direita teria de se unir em torno de Marcelo. Não havendo, estava criado o caldo de cultura para um arruaceiro eficaz agitar o ressentimento que, por muitas razões, se instalou em tantas pessoas. Resultou… parabéns.
É cedo para perceber, naquele quase meio milhão de votos, quantos correspondem à extinção do CDS e quantos foram tirados ao PSD, mas a irritação de Rui Rio na noite eleitoral tem muita oportunidade: arranjou um lindo sarilho com a condescendência que foi oferecendo a quem sempre lhe mordeu a mão.
Costa tem, portanto, a direita entretida com os seus fantasmas e a sua esquerda paralisada, assustada com a confirmação da sua irrelevância. Se fosse para ir levando com a barriga, como o PS sempre faz, tinha, pelo menos, mais um par de anos de boa vida garantido à rapaziada que o elege no partido.
Mas o que se passa à volta não tolera muito mais a constância da incompetência deste Governo. Hoje foi só mais um dia de tristes recordes na pior catástrofe que os vivos conheceram e é cada vez mais evidente que mais é possível e indispensável.
Porque nem tudo pode ser amargo, Marcelo esteve à altura do momento trágico na noite da eleição. Concentrou na tragédia que vivemos toda a energia da sua renovada autoridade e comprometeu-se a uma vigilância diferente, agora, quando tudo colapsa à nossa volta.
Está na altura de perceber que só isso conta neste momento. Não é pouco ter ao leme quem finalmente entende que decisões hesitantes produzem, no que enfrentamos, resultados catastróficos. Ou travamos a pandemia ou não vai sobrar nada para pôr ao postigo.
(Opinião publicada na VISÃO 1456 de 28 de janeiro)