De facto, estas eleições são unipessoais e todas as ilações e projecções que se retirarem para o campo partidário são arriscadas. Bem sei que os comentadores não resistem a tal e os líderes partidários ainda menos. A maior parte dos partidos do sistema não foi a votos. Nem PS (que deu liberdade de voto), nem PSD (apesar de ser a família política de Marcelo ele fez uma campanha independente, tal como há cinco anos). Os únicos candidatos claramente associados a partidos foram o comunista João Ferreira, a bloquista Marisa Matias, o liberal Tiago Mayan Gonçalves e o extremista de direita, André Ventura.
Daí que o discurso de todos os líderes partidários não-candidatos tenha sido geralmente descolado da realidade, vendo vitórias onde não existem e derrotas alheias. O CDS clamou vitória quando o partido estava dividido e resistia a declarar o seu apoio ao candidato Marcelo. O PAN foi pelo mesmo caminho. A IL falava em “onda liberal” e o que se viu foi uma pequena brisa num mar chão. Aliás, este foi a grande flop das projecções à boca das urnas, que davam mais de 6% ao candidato quando, afinal ficou a discutir o último lugar com Vitorino Silva.
O mais delirante talvez tenha sido mesmo a declaração de Rui Rio que resolver rir e cantar enquanto o seu barco se afunda cada vez mais. Atacar o PCP no Alentejo é pouco sério pois Ventura ficou igual ou melhor colocado nos círculos eleitorais do interior Norte e Centro do país, que votam tradicionalmente PSD e CDS, como são os casos de Viseu, Vila Real e Bragança. O país mais pobre e isolado é que se deixou encantar em parte pela retórica inconsequente do candidato populista como forma de protesto pelo esquecimento a que se vê votado.
A insistência do Bloco na candidatura de Marisa Matias foi um erro estando Ana Gomes na corrida e a desta foi um grande equívoco, a partir duma justificação pífia. Mas se quisermos extrapolar para o espectro partidário, o único que não falou foi o que venceu politicamente esta batalha: António Costa, que apoiou a reeleição de Marcelo.
Porém, o caso de Ventura é grave. O Chega! ainda tentou ensaiar uma tirada trumpista alegando fraude eleitoral com o voto antecipado, embora tenha deixado cair a tese rapidamente. Depois temos a tentativa descarada de enganar os eleitores com o caso do falso cigano e falso apoiante de Bragança, empurrado para a frente das televisões. Ventura é um indivíduo sem palavra, que tanto diz uma coisa como o seu contrário, xenófobo, racista e misógino, em cujo programa partidário consta a intenção de acabar com a saúde e a educação públicas, que dá guarida no partido a caciques, alegados foragidos da justiça e bombistas do PREC, que insulta constantemente os adversários políticos (mesmo os que não concorrem contra ele, como Jerónimo de Sousa, a quem comparou a um bêbado), mas que tem feito as delícias da imprensa.
É alguém que acha normal a prisão perpétua, e até cortar as mãos aos ladrões como disse no debate com Ana Gomes, e está num partido no qual boa parte considera normal punir as mulheres que abortam com a retirada compulsiva dos ovários e castrar física ou quimicamente os violadores.
Como Portugal não tem um problema com os imigrantes, inventou uma retórica paralela com a comunidade cigana, a partir do discurso da subsidiodependência, a ponto de querer acantoná-los, tipo gueto de Varsóvia nos dias do nazismo. É alguém que diz declaradamente, à boa maneira populista, não querer ser presidente de todos os portugueses mas apenas dos portugueses “de bem”, seja lá o que isso for.
Esta campanha foi fértil em incidentes. Preocupado com o nível de abstenção que se temia, Ferro Rodrigues fez um apelo ao voto, em véspera de eleições, mas duma forma patética, dizendo ser uma arma contra o vírus. Toda a gente lhe caiu em cima e bem. Mas Ventura disse exactamente o mesmo ao exercer o seu direito de voto (“a arma que temos de usar” contra a pandemia é o voto) e ninguém se incomodou com isso. No fundo já se começa a ser indiferente ao que diz Ventura, vistas as alarvidades constantes do seu discurso.
Como muito bem sugeriu Marcelo, o governo deve rever a lei eleitoral e a constituição desde já. Há que admitir o voto por correspondência, reforçar o voto antecipado, e permitir que uma eleição possa ser adiada em caso de calamidade como a que estamos a viver. Mas deviam aproveitar para acabar com o chamado dia de reflexão, que é politicamente pré-histórico, e considerar um mandato único de sete anos para Belém, de modo a deixar de transformar os primeiros mandatos em campanha permanente para a reeleição.
Feitas as contas quem ganhou foi o País, a partir do momento em que Marcelo declara que será presidente de todos os portugueses, para quem não há bons nem maus, contra a retórica divisionista e fascizante de Ventura.
E agora, voltemos ao combate à pandemia.