Não haverá nenhum português dono do seu inteiro juízo que não acalente a esperança de ver a campanha de vacinação contra a Covid-19, que se iniciou esta semana, pôr termo a um ano sombrio de angústias e incertezas para todos, e de desespero para muitos. Eu não destoo. Julgo, ainda assim, que vale a pena temperar otimismos irritantes.
Desde logo porque, mesmo que assumamos que a campanha de vacinação vai decorrer na perfeição, parece evidente que há efeitos que já se produziram e com os quais teremos de viver muitos anos. Não me refiro, porque é desnecessário por ser tão óbvio, às vidas que entretanto se perderam. Centro-me nos efeitos económicos da pandemia. Relembro, por exemplo, que a dívida pública bateu todos os recordes e pode rondar os 135% do PIB no final deste ano, o que não deixará de limitar muitas das nossas opções futuras e sobretudo as das gerações que nos seguirão. Recordo que muitos dos problemas que os cidadãos particulares e as empresas portuguesas sofreram nos últimos meses foram (e bem) empurrados para a frente, nomeadamente sob a forma de moratórias. Mais tarde ou mais cedo, esses problemas e dívidas vão ter de ser resolvidos. Sublinho, por fim, que há setores que provavelmente sentirão efeitos estruturais desta crise durante ainda mais alguns anos. Estou a pensar na aviação civil (que, para o bem e para o mal, passou a ser um problema de nós todos) e no turismo (que vale cerca de 15% do PIB português). Nada disto resolve a vacina.
Mas infelizmente há mais razões para moderar o entusiasmo. Embora gostasse muito de acreditar no contrário (e afirmo-o sem qualquer ironia), faço parte dos que receiam que o plano de vacinação possa não correr sobre rodas. Antes de mais, porque estou consciente de que a campanha seria sempre muito difícil. E sê-lo-á sobretudo no plano logístico, sendo preciso identificar e contactar grupos de risco com patologias diferentes, a tempo e horas, fazendo chegar a todos, com a precisão de um relógio suíço, milhões de vacinas em condições de conservação muito exigentes.
Como se já não bastasse, os antecedentes na gestão da pandemia não são exatamente brilhantes. A verdade é que o País não deu grandes provas quando se tratou de reabrir a sociedade e era preciso adequar transportes ou pôr em funcionamento equipas de deteção e reação rápida. A verdade é que a comunicação foi o que se sabe, tardámos a desenhar um plano de articulação entre o SNS e os setores privado e social, não conseguimos disponibilizar, apesar de todas as garantias, vacinas para a gripe. Falhámos, sobretudo, naquela que era a nossa principal obrigação: a proteção dos lares.
Se pensarmos, por fim, que a task force responsável por coordenar o gigantesco desafio que temos pela frente só foi nomeada no final de novembro e teve um mandato de 30 dias para anunciar a estratégia de vacinação (quando a Alemanha, por exemplo, está a trabalhar no tema desde abril), julgo que podemos todos concordar que há razões para autorizar algum ceticismo.
Tudo me faz pensar, em suma, que seria prudente fazer uma gestão cuidadosa das expectativas e que o ambiente económico, social e político vai degradar-se mais, antes de melhorar. Mas também é verdade que poucas vezes tive mais vontade de estar redondamente enganado.
(Opinião publicada na edição 1452 de 31 de dezembro)