Obviamente entendo que o Estado português não fez, com a urgência e a dimensão exigíveis, o que devia ter sido feito após o assassínio nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do cidadão ucraniano Ihor Homenyuk. Como o não fez, e continua a não fazer, em relação a várias formas de violência policial, que sucessivos relatórios da Amnistia Internacional têm referenciado. De resto, já vem sendo uma lamentável “tradição” os ministros da Administração Interna, muito bem, destacarem a importância democrática das forças de segurança e o bom trabalho que em geral é o seu, mas, muito mal, não condenarem com a devida clareza e firmeza os seus abusos, mesmo flagrantes, limitando-se a fria e burocraticamente remeterem para um “inquérito”.
Tenho experiência ou conhecimento, também como cidadão e advogado, de situações dramáticas, antes do 25 de Abril, além das ocorridas na PIDE. Mas também após o 25 de Abril as tem havido, menos e em alguns casos punidos os responsáveis, em regra com “indulgência”. Recordo a mais emblemática e terrível: a do cidadão assassinado, com um tiro na cabeça dentro de um posto da GNR, e depois decapitado, sendo o corpo enterrado num lugar e a cabeça, de que tentaram extrair a bala, noutro. O crime foi em maio de 1996, o seu autor está em liberdade desde 2007. Acompanhei o “caso” para reunir documentação a pedido do Antonio Tabucchi, que a partir dele escreveu um dos seus admiráveis romances de ambiência portuguesa – A cabeça perdida de Damasceno Monteiro.
Também em relação ao SEF há muito existem pelo menos suspeitas, indícios, que deviam ter merecido outra atenção. Sendo certo que em relação a ele ainda é mais difícil haver “queixas”, provas, dado as vítimas serem, como Ihor, pessoas desprotegidas, que desejam entrar em Portugal e são recambiadas para a origem. Os maus-tratos, aliás, podem nem ser só físicos, nem resultar só da prática do Serviço, antes, também, de orientações políticas, da incultura e insensibilidade de governantes. Foi o que aconteceu, durante bastantes anos, com os brasileiros quando chegavam a Portugal, tratados de uma vergonhosa forma discriminatória. Contei aqui na VISÃO um caso exemplar, ocorrido com um grande escritor e meu ‘compadre’, João Ubaldo Ribeiro. Foi humilhado, esteve horas até conseguir entrar, o que denunciei também em entrevista à RDP. Recebi depois um telefonema do então ministro da tutela, Dias Loureiro, a garantir-me que não tinha sido maltratado, pois informara-se e não sofrera qualquer sevícia nem sequer fora detido…
Voltando ao caso específico de Ihor, se entendo que mais (e mais rapidamente) deveria ter sido feito, que ao menos agora não se fique por uma reformulação organizativa do SEF mas em relação a ele, e a todas as forças policiais, se imponham regras e procedimentos que evitem o mais possível qualquer tipo de violação dos Direitos Humanos, em particular dentro das suas instalações. E que, quando elas se verifiquem, os “responsáveis” não mantenham silêncios se não cúmplices pelo menos destinados a desdramatizar, ou mesmo normalizar, o que é intolerável. Tudo tem de ser claro, urgente e tornado público. Sem ser necessário tratar-se de um assassínio (no caso, com vários “cúmplices”, mormente por ocultação), bastando ser uma agressão como a que Cláudia Simões sofreu, imagens documentam e o comandante da PSP declarou traduzirem um uso adequado da “força”.
Enfim, para lá do que ficou dito, impressiona-me a quantidade de políticos e comentadores que durante meses não disseram nada e agora tanto criticam o ministro e até o Presidente. Pela minha parte, logo a 16 de abril esta minha crónica era-lhe dedicada, intitulava-se “Um crime inimaginável”, e nela reclamava “o maior rigor e rapidez no apuramento de toda a verdade, em toda a sua dimensão, tornando-se tudo público” – a não ser assim, escrevi, tal seria inclusive “danoso para a imagem do País”. E, além do mais, dois meses depois, a propósito de outro bárbaro assassínio, salientava que, se as imagens de “horror” da morte do negro George Floyd sob o joelho branco dum polícia correspondessem às de uma “curtíssima-metragem”, se houvesse imagens das longas horas do cidadão ucraniano preso, amarrado, torturado, morto no SEF, essa “seria uma ‘longuíssima-metragem’, com cenas porventura não menos terríveis”…
(Opinião publicada na edição 1451 de 24 de dezembro)