Nos últimos tempos tenho assistido com surpresa a críticas ao Presidente da República por este não ter impedido a solução de governo encontrada nos Açores. Há quem afirme, sem hesitações, que, se fosse Presidente, teria impedido a coisa. É o caso de Ana Gomes e de Marisa Matias. Mais adiantam que se forem eleitas e se forem confrontadas com uma solução de governo nacional em que, por exemplo, o PSD tenha apoio parlamentar do Chega não darão posse a tal executivo putativo. Criticam, por isso, Marcelo Rebelo de Sousa por este afirmar exatamente o contrário, sendo que o faz escudado na Constituição e explicando o óbvio: podemos não gostar de um determinado cenário político, mas temos de respeitar as regras do jogo democrático.
Penso que ninguém terá dúvidas de que a extrema-direita populista está, para mim, na categoria de inimigo político. Um partido com posições racistas e xenófobas, um partido que despreza a República, não é meu adversário, é meu inimigo.
Posto isto, o meu combate político não me faz esquecer ou tresler a Constituição. Tem sido amplamente citado o artigo 46º da Lei Fundamental, preceito que proíbe organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista. Este normativo é citado para justificar a razoabilidade da decisão de um Presidente ou de uma Presidente vetarem a constituição de um governo com apoio parlamentar do Chega.
Acontece que a norma constitucional tem de ser lida com muita cautela. Por um lado, a proibição de organizações racistas, que faz todo o sentido numa República baseada na dignidade da pessoa humana, leva a que o Tribunal Constitucional, quando aprecia a legitimidade de um partido, verifique se está em perigo o cometimento, por parte dessa organização, de crimes, como o crime de constituição ou de desenvolvimento de atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência raciais, o que nos remete para conceitos complexos e precisos de direito penal.
Por outro lado, a proibição de organizações que perfilhem a ideologia fascista, evidentemente explicável à luz do contexto de 1975, é uma norma restritiva que deve ser lida restritivamente. A democracia madura vive com os seus inimigos e é no jogo político que os combatemos, pelo que o que aqui se veda é a organização política, fascista, em si mesma – do tipo das do Estado Novo, para alguns – , não sendo de modo algum inconstitucional, ainda que repugnante, a expressão política de ideias fascistas, protegida pela liberdade de pensamento, de expressão e até de reunião.
O Chega foi legalizado e até que o Tribunal Constitucional, por iniciativa do Ministério Público, mude de entendimento, tem os mesmos direitos que os restantes partidos políticos. O voto popular num partido que tenho por inimigo vale tanto como o voto no meu partido.
É por isso absurdo afirmar-se que Marcelo deveria ter vetado a solução governativa dos Açores ou afirmar-se que no lugar de Presidente não se dará posse a um governo com o apoio do Chega. A Constituição não o autoriza. O Presidente nomeia o governo tendo em conta os resultados eleitorais e o Presidente não pode substituir-se ao Tribunal Constitucional numa escabrosa violação do princípio da separação de poderes.
Às vezes custa muito ser democrata. Pode até ser impopular. Mas uma pessoa que respeita a Constituição não exceciona o respeito quando a dureza espreita. Levanta a cabeça e luta. Politicamente. Porque queremos mesmo que seja 25 de Abril sempre e fascismo nunca mais.
(Opinião publicada na VISÃO 1450 de 17 de dezembro)