A Covid-19 concitou a unanimidade do nosso Parlamento no reconhecimento do esforço excecional dos profissionais de saúde que, na primeira vaga, estiveram na primeira linha do combate à doença e no tratamento dos cidadãos infetados.
Os objetivos pareciam claros: criar um prémio de desempenho a atribuir aos profissionais de saúde que, na vigência do Estado de Emergência (19 de março a 2 de maio) e em regime de trabalho subordinado, tenham praticado, de forma continuada e relevante, atos diretamente relacionados com pessoas suspeitas e doentes infetados por covid. Ficou desde logo estabelecido o montante do prémio pecuniário (metade do salário – base mensal de cada profissional) e ainda o direito a gozar, pelo menos, mais dois dias de férias (um por cada período de 80 horas de trabalho normal e mais um por cada período de 48 horas de trabalho suplementar, por trabalho extraordinário ou exercício em horários incómodos).
O Governo tinha 30 dias para regulamentar a Lei da AR, publicada em DR em 24 de julho, mas só o fez no Conselho de Ministros de 20 de novembro último, ou seja, cerca de 3 meses depois do prazo previsto. Este atraso parece traduzir alguma desvalorização deste prémio e não foi, naturalmente, bem visto pelos profissionais de saúde. Mas, pior do que isso, caiu em plena segunda vaga, mais exigente para o SNS e para os seus profissionais. É que, perante a pressão hoje existente sobre a capacidade de resposta do SNS, seria natural que o Governo viesse, agora, anunciar um segundo prémio e não, apenas, prometer o pagamento do primeiro.
Os sindicatos e as Ordens profissionais não manifestaram, desde o princípio, particular entusiasmo pelo prémio, não só porque era “poucochinho”, como também porque tinham em mente outro instrumento para aumentar a remuneração, permanente e universal, que era o subsídio de risco. Pois bem, a regulamentação do prémio, absolutamente fiel ao aprovado no Parlamento, deixou de fora os profissionais que não trataram doentes covid e/ou que não contactaram pessoas suspeitas. E foram, como se sabe, muitos, quer nos cuidados primários quer nos hospitais, tendo em conta o baixo número de infetados que exigiram especial atenção. A atribuição do prémio a todos os 140 mil profissionais de saúde do SNS, como pretendem agora sindicatos e Ordens profissionais, seria uma injustificada injustiça para aqueles que efetivamente tiveram um trabalho hercúleo, de grande sacrifício e dedicação e que correram enormes riscos. Convém até relembrar que a atividade não covid sofreu uma quebra inusitada e comprometedora para muitos doentes, aquando da primeira vaga, sendo uma decisão irresponsável e insólita premiar quem nesse período não pôde operar, não teve consultas, diminuiu tratamentos ou viu os doentes das urgências reduzidos a 50% do seu caudal habitual.
A atribuição deste prémio é uma medida excecional que pretende reconhecer o mérito daqueles que tiveram, no período considerado, um desempenho excecional ao serviço do SNS e dos seus doentes: enfermeiros, intensivistas, anestesistas, infeciologistas, pneumologistas, internistas, médicos e enfermeiros de saúde pública e de medicina geral e familiar, profissionais de patologia clínica, técnicos de diagnóstico e terapêutica, profissionais do INEM, assistentes sociais, psicólogos, assistentes operacionais e assistentes técnicos e outros profissionais, que tiveram nesse período de abdicar das suas vidas para acorrer e manter sob vigilância potenciais infetados e todos aqueles que ingressaram nos hospitais e em especial nos cuidados intensivos. A discriminação positiva destes profissionais é assim justa e adequada.
Premiar o mérito e discriminar os melhores não é, todavia, uma cultura típica da administração pública portuguesa, baseada num modelo de carreiras burocrático, sem estímulos e em que a antiguidade continua a ser um posto. Este modelo não aceita bem a discriminação positiva e a recompensa devida aos melhores e, por isso, prefere remunerações permanentes e universais em que os riscos não existem e a acomodação previne conflitos.
Esta matéria entronca com a questão dos incentivos, de que já aqui falei recentemente a propósito da carreira médica, e que pode ser alargada a todas as profissões de saúde. Um modelo remuneratório com incentivos pretende orientar o comportamento dos profissionais de acordo com o desígnio estratégico das organizações. Se se quer combater o flagelo das listas de espera, criam-se incentivos que promovam mais períodos de trabalho e mais volume de atividade. Se o objetivo é promover a qualidade do serviço, baixando taxas de mortalidade ou a ocorrência de efeitos adversos, criam-se indicadores de medida e metas a atingir. Os incentivos não serão obtidos por todos, exigem dedicação e esforço e traduzir-se-ão em remunerações e regalias diferenciadas para profissionais do mesmo nível e especialização.
Só assim conseguiremos na Saúde, como eventualmente noutras áreas, orientar os profissionais para o que mais importa: responder com competência e a tempo e horas aos desafios e expetativas que os utentes lhes colocam. Nivelar pela mediocridade, impedir a distinção dos melhores e reduzir as remunerações a um modelo baseado em horas de trabalho e posição na carreira, trava qualquer desenvolvimento na administração pública e mantém os serviços com níveis de eficiência e de qualidade medíocres. Esta pretensão do prémio para todos é, infelizmente, bem reveladora.