1 – Com a vitória de Joe Biden, saiu-nos um peso de cima. O ar ficou mais ‘leve’. Renasceu ou reforçou-se a esperança de não caminharmos para o abismo e de vivermos num mundo mais habitável. Mas Trump e trumpezinhos de várias latitudes não o querem permitir e são capazes de recorrer a tudo. De mentiras e falsidades despudoradas, sua letal arma primeira, até ameaças, violências, criação de infundados climas de suspeição e medo; até populismos que exploram a ignorância, os piores instintos, os preconceitos xenófobos, racistas, sexistas, que de uma forma ou de outra incitam ao ódio. E que aproveitam a democracia, e suas fragilidades, para a atacar ou tentar destruir.
2 – Em Portugal, vacinado por 48 anos de ditadura, as organizações com, mais coisa menos coisa, tais características e objetivos não lograram singrar e ter, designadamente, representação parlamentar. Até chegar… o Chega. Não cabe aqui analisar se este partido se “encaixa” por inteiro naquele retrato: não há dúvida nenhuma é de que no retrato de família é aí que ele está. Por isso os partidos democráticos e os democratas em geral só podem atuar, face a ele, em termos de não lhe facilitar os intentos, atapetar o caminho, ajudar a credibilizar ideias e posições, algumas atentatórias mesmo dos Direitos Humanos. E não é isto que se faz, obviamente, quando com ele se negocia para constituir um governo, mesmo que dessa negociação não conste qualquer condição ou cláusula infamante…
3 Rui Rio autodesferiu, pois, um golpe profundo na imagem que dele tinham e na avaliação que dele faziam muitos, entre os quais me incluo, ao aprovar um acordo com o Chega tendo como objetivo viabilizar um governo do PSD nos Açores. Várias vezes escrevi sobre Rio, mormente defendendo-o de injustos ataques internos e salientando suas qualidades. Entre elas a de surgir como um político sério, que parecia não sacrificar princípios para chegar ao poder, com coragem de tomar atitudes que nessa perspetiva o podiam até prejudicar, etc. À maior “crítica” que lhe fiz aludi no último comentário, sobre aquele tema: “E foi pena que o Chega se tivesse adiantado a recusar a hipótese de entendimento com um ‘partido do sistema’ − o PSD, claro −, impedindo de ser o PSD a recusá-lo primeiro, como espero faria corrigindo o grave erro, este de Rio, quando há tempos não afastou em absoluto essa possibilidade.”
Afinal, foi tudo ao contrário. Uma vez mais, André Ventura desdisse o que tinha dito. Mas, muito pior, o líder do PSD confirmou, e levou à prática, o que tinha dito… Sem sequer precisar que o Chega se moderasse, bastando-lhe que não impusesse ao próximo governo dos Açores as suas propostas mais extremistas e/ou absurdas. Tal atitude, além do que representa para Rio, só pode prejudicar o PSD: se houvesse eleições a curto prazo, isso ver-se-ia bem.
Duas notas finais: a) apesar de tudo, outra coisa seria se, sem haver qualquer negociação e acordo, o Chega viabilizasse o (legítimo) governo minoritário do PSD; b) também não parece curial que o CDS, que até rompeu em Loures a coligação com o PSD por este apresentar Ventura como candidato à presidência, agora participe sem aparentes problemas de consciência nesta “solução”.
(Opinião publicada na VISÃO 1445 de 12 de novembro)