Durante a primeira vaga de covid-19, a entrada em vigor, a 19 de março, do Estado de Emergência (17 dias, apenas, depois do primeiro caso registado em Portugal), foi decisiva para travar o vírus. Três semanas depois, iniciámos uma descida contínua na ocorrência de novos casos e quatro semanas depois o mesmo ocorreu no número de doentes hospitalizados e no número de óbitos diários. Achatamos rapidamente a curva e até finais de agosto as coisas estiveram controladas.
A declaração do Estado de Emergência permitiu impedir deslocações não necessárias, fechou fronteiras, lojas não essenciais, restaurantes, todos os graus de ensino, cinemas, teatros e locais de diversão noturna, toda a atividade desportiva, ginásios, cabeleireiros, etc. Foi um período de confinamento prolongado, até maio, que causou graves prejuízos à atividade económica, a separação das famílias e nos obrigou a permanecer no domicílio. Foi duro, foi difícil, mas impediu ruturas no SNS e, sobretudo, um número elevado de mortos. Passamos a primeira vaga com evidente sucesso, mas a lição parece não ter sido aprendida.
A partir da semana que começou em 7 de setembro, iniciamos uma segunda vaga, cujo fim não está ainda à vista. Todos os indicadores têm apresentado crescimentos record, muito superiores à primeira vaga. O número diário de infetados é hoje seis vezes superior ao verificado no pico da primeira vaga. Os internamentos aumentaram perto de 90%, os doentes em cuidados intensivos 34% e os óbitos perto de 70%. Estamos numa situação pandémica incomparavelmente mais grave, pese embora o vírus apresente hoje uma taxa de letalidade bem mais baixa: 4,5% em maio/junho e 1,6% agora. A principal consequência do recrudescimento dos contágios reflete-se na atividade hospitalar e na mortalidade absoluta. Estamos hoje confrontados com alguns hospitais em pré-ruptura, com falta de meios de resposta a uma procura imparável, Covid e não Covid, e temos também um número de óbitos em crescimento, a questão mais dramática desta crise.
Entretanto, as medidas de persuasão das autoridades para adotarmos condutas mais cautelosas e evitarmos contactos sociais, têm tido, como se percebe, um impacto muito limitado. As faixas etárias mais jovens são hoje as mais afetadas com o contágio, porque são também as que mais circulam, por razões de estudo ou trabalho, mas também por convívio social. E sobre elas a simples persuasão não é eficaz.
Faz, por isso, todo o sentido, que o Estado tome medidas mais enérgicas para travar a infeção. Seria até adequado que já o tivesse feito há mais tempo – quando atingimos os mil casos diários, na primeira semana de outubro – pois sabemos que os seus efeitos demoram duas a três semanas a produzir a inversão das curvas. Agora, será mais difícil reencaminhar a pandemia para valores mais controláveis.
Não se percebe, por isso, a posição de alguns partidos políticos que, não só são contra o estado de emergência, como apresentam como solução o reforço do SNS, com mais equipamentos e mais profissionais. Em vez de pensar reduzir o número de doentes estes partidos importam-se mais com o reforço da resposta á doença. Tudo ao contrário do que se recomenda, porque a prevenção diminui o contingente de doentes, o sofrimento daí resultante e os custos para o erário público.
O Estado de Emergência parece vir, desta vez, em moldes mais suaves, não fechando atividades mas apenas diminuindo a sua intensidade. Restauração, teatros, cinemas e afins, verão a sua atividade ligeiramente reduzida em termos horários, os estabelecimentos comerciais terão uma hora de encerramento menos tardia, o ensino continuará a funcionar presencialmente e a circulação das pessoas será apenas afetada pontual ou localmente.
Para a magnitude do problema parecem-me medidas insuficientes, sendo questionável que consigam achatar a curva e deixar-nos descansados no Natal. Os serviços de saúde continuarão sob forte pressão e a mortalidade a subir. Acentuar-se-á o dramatismo e o medo e a Economia sofrerá nova recessão.
Se, pelo contrário, entrássemos num período de recolher noturno obrigatório, generalizado a todo o país, o sucesso seria provavelmente bem visível. A Economia não sofreria grande erosão e o vírus não se expandiria nos convívios noturnos, nos jantares de família ou em atividade culturais ou de diversão noturnas.
Percebe-se a posição do poder político em tentar manter equilíbrios entre a saúde e a vida económica e social. Mas em momentos críticos exigem-se decisões claras e bem fundamentadas, que obtenham a compreensão das populações, por um lado, e mitiguem as terríveis consequências para a saúde pública: mais doentes, mais contágio, insuficiências de resposta, mais mortos, danos colaterais nos outros doentes e custos incomportáveis para o SNS.
A este propósito, o Estado de Emergência vai facilitar a obtenção do concurso do setor privado para ajudar a resolver os problemas criados pela COVID nos serviços públicos. Privilegia-se a negociação, mas admite-se a possibilidade do Estado impor essa cooperação, embora, como se sublinha, o setor privado deva ser justamente recompensado. A colaboração do setor privado, quer para o tratamento dos doentes Covid, quer para o tratamento de outros doentes que entretanto ficaram impedidos de aceder ao SNS, deveria ter sido negociada com critério e serenidade em tempos de menor pressão e para isso não seria necessário Estado de Emergência. Não apenas por razões de planeamento, mas também porque a definição de contratos para tratar doentes, pressupõe a criação de indicadores de avaliação do desempenho e de preços compreensivos que comportem modelos de partilha de risco, racionais e complexos. Estabelecer contratos à pressa, fixando apenas um preço que à tutela pareça competitivo, pode ser um alçapão sem fundo por onde se escoem recursos financeiros sem proveito público.