A 2ª vaga do vírus SARS-CoV-2 chegou em força a Portugal. Depois da acalmia de julho e agosto, setembro foi o início de um processo imparável de crescimento de novos casos cuja paragem é difícil de prognosticar. Há estimativas que apontam já para cerca de 6 mil casos diários até ao final do ano e um pico apenas em 2021. São previsões assustadoras que assentam num pressuposto essencial: não haverá novo confinamento e as medidas de prevenção serão similares às atuais. Este pressuposto pode, todavia, mudar.
Importará analisar as diferenças entre as circunstancias que vivíamos em março/abril e as que vivemos hoje, já que isso nos permitirá relativizar a gravidade da situação, perceber melhor os impactos e antecipar soluções mitigadoras.
1. O volume de novos casos
Batemos todos os records de novos casos nesta última semana: mais casos num dia e maior carga de novos casos por semana. O aumento face à semana anterior (5 a 11 de outubro) foi de 72%, cifrando-se num número médio diário de cerca de 1900 novos casos. Em relação à semana com mais casos na 1ª vaga a diferença é já brutal, representando 2,5 vezes os valores de então (760 casos/dia). Esta é uma realidade comum à maioria dos países europeus, com um número de novos casos muito superior aos registados na 1ª vaga.
2. A idade dos infetados
Na fase mais aguda dos meses de março e abril, as faixas etárias de mais idade, acima dos 70 anos, eram as mais afetadas pelo novo vírus, fruto das fragilidades evidentes dos lares na manutenção da saúde dos seus residentes, da falta de condições de segurança e da impreparação dos cuidadores. Nesse período, cerca de 25% dos infetados tinham mais de 70 anos, com a franja superior a 80 anos a representar cerca de 15% do total. Hoje, os infetados são tendencialmente mais jovens: os mais velhos (mais de 70 anos) representam apenas 16% dos novos casos e os infetados com menos de 40 anos são já 43% do universo de infetados, quando em abril representavam menos de 30%. Esta alteração na estrutura etária, em que o maior crescimento se verificou nas faixas etárias com menos de 30 anos, é um fator determinante para a menor gravidade dos casos, a maioria deles assintomáticos e fora do perímetro hospitalar.
3. A atividade hospitalar
Pelas razões acima referidas, a pressão sobre os hospitais ainda não atingiu os valores que tivemos na 1ª vaga. No pico de abril tínhamos mais de 1.200 doentes internados, em termos de existência média diária, e agora estamos ainda nos 950. Suspeitamos que se nada for alterado na política de controlo da pandemia, poderemos ver este número subir acentuadamente, com riscos evidentes para a capacidade de resposta do SNS.
Do mesmo modo, a pressão sobre os cuidados intensivos está ainda aquém dos valores de abril, na altura com uma existência média diária de 245 doentes, quando hoje estamos ainda com 136. É curioso verificar que o peso relativo dos doentes críticos é hoje de 14%, quando em abril era de cerca de 20%, o que indicia menor gravidade dos doentes hospitalizados.
Este contraste, entre o incremento sem precedentes de novos casos e o impacto ainda inferior na atividade hospitalar, dão-nos algum tempo para preparar o futuro imediato, mas as expetativas não são as mais tranquilizadoras.
4. Menos óbitos
Em todos os países europeus registamos hoje muito menos óbitos relativamente aos ocorridos na primavera. As razões prendem-se com o peso das populações mais jovens no contingente dos infetados, ao melhor conhecimento e experiencia das equipas médicas e aos modelos terapêuticos que têm sido padronizados, mais seguros e mais eficazes. Não temos sobre este tema muita informação, mas o que é facto é que as taxas de letalidade têm diminuído de forma acentuada em todos os países europeus, incluindo entre nós. Em abril tínhamos cerca de 30 óbitos por dia (em média semanal) e hoje temos cerca de 14, menos de metade. A nossa taxa de letalidade atingiu valores próximos dos 4,5% em maio/junho e hoje está nos 2,2%,sempre em valores muito mais baixos do que os países europeus que nos estão mais próximos. A tendência de subida de novos óbitos parece ser, todavia, inexorável.
5. O controlo político da pandemia
Registamos aqui as maiores e mais decisivas diferenças entre as duas vagas. Na primavera, o governo foi lesto e decidido a promover o confinamento, com a colaboração próxima do Presidente da República. A Economia e o ensino ficaram para segundo plano e tudo foi feito para parar os surtos pandémicos. O sucesso foi visível algumas semanas depois, com a descida rápida e consistente de novos casos.
Desta vez, há uma relutância evidente em tomar medidas radicais, comum, diga-se, a todos os países europeus e até às posições tomadas pela OMS. Mas há já sinais evidentes de inquietação e alarme nos órgãos de soberania, não sendo de descartar um novo confinamento, ainda que um pouco menos severo. Os riscos de uma pandemia descontrolada, com a subsequente rutura dos serviços de saúde públicos e mais óbitos, colocam aos decisores políticos novos cenários e opções muito delicadas.
6. O comportamento das pessoas
A declaração do estado de emergência em 19 de março fez com que todos nós deixássemos de poder sair à rua. Apenas o fazíamos para compras de primeira necessidade. Os portugueses, com compreensível medo, cumpriram exemplarmente esse confinamento que durou praticamente dois meses. Isso foi decisivo para conter o vírus. Hoje a situação é muito diferente: a atividade económica está a retomar o seu ritmo, as escolas estão aberta, os restaurantes, cafés, teatros, cinemas, ginásios, mercados, centros comerciais,etc., funcionam com relativa normalidade, os transportes públicos também, as famílias e os amigos voltaram a reunir-se e a festejar os aniversários, registaram-se grandes festas partidárias ou manifestações religiosas e parece que todos encaram este novo normal com descontração e algum relaxamento. As pessoas estavam já cansadas do isolamento e passaram a relativizar o vírus e os seus riscos. Porém, neste momento crítico, não vejo melhor solução para conter a escalada do vírus do que aprovar um novo confinamento, ainda que mais seletivo e menos agressivo para a atividade económica. Todos teremos que o aceitar!