Sei que, se o espaço de manobra entre as margens do pleno exercício da liberdade religiosa numa democracia ocidental, por um lado, e o abuso de poder religioso por outro, essa espécie de “terra de ninguém” é difícil de definir, e ainda muito mais difícil de gerir pelas autoridades públicas. A vocação do estado laico não lhe permite definir o que são instituições religiosas legítimas ou não, a não ser os limites naturais da constituição, das leis da república e dos direitos humanos. Junta-se a isto a iliteracia religiosa de boa parte da classe política, que normalmente não sabe nada da matéria nem conhece o meio.
Qual é o quadro que se tem vindo a agravar de dia para dia? Qualquer indivíduo vindo do Brasil, por exemplo, chega a Portugal e autointitula-se pastor evangélico (quando não bispo ou apóstolo) e abre uma igreja de vão de escada, por vezes sem sequer alguma vez ter sido ordenado ao ministério espiritual por qualquer igreja. Se a coisa dá, segue em frente, apoiado na significativa colónia de emigrantes daquele país, mas se não dá, parte para outra cidade ou país, deixando atrás de si um rol de dívidas de aluguer de espaços, de fornecimento de energia eléctrica, água e telefone.
O problema é que a maioria do campo protestante e evangélico no País é constituído por gente séria, que se gasta e desgasta ao serviço dos outros, lutando muitas vezes com dificuldades de toda a ordem, e acaba por ser prejudicada na sua imagem pública por estes maus exemplos de abuso por parte de indivíduos desqualificados, abusadores e aproveitadores. A iliteracia religiosa da população faz o resto, não permitindo ao cidadão comum ser capaz de discernir as inúmeras variantes do campo religioso.
O centro de investigação académico a que estou ligado promoveu há tempos um inquérito às lideranças evangélicas sobre a imagem pública das comunidades de fé em Portugal. Os resultados revelaram claramente consciência do problema, uma vez que 96,1% dos inquiridos considera que “eventuais abusos, exageros ou desvios doutrinários de grupos religiosos que se apresentam como evangélicos prejudicam a sua imagem e da sua comunidade de fé na sociedade”. Parece considerar-se que a identidade “evangélica” é extremamente fluida, prestando-se assim aos tais abusos, exageros e desvios, visto que qualquer um se pode apresentar como evangélico.
Mais. Os respondentes consideram inequivocamente que alguma coisa tem que ser feita, daí 98% terem respondido afirmativamente à questão “As comunidades protestantes/evangélicas poderiam fazer algo para melhorar a sua imagem na sociedade?” Embora a maioria dos inquiridos tenha optado pela necessidade de uma melhor comunicação, já que os organismos de comunhão de igrejas não respondem a essa necessidade (não dispõem dum gabinete de imprensa a sério, por exemplo, nem de porta-vozes), nem as comunidades cristãs. Mas quase metade parece aberto à ideia dum organismo de credenciação das lideranças, muito embora a questão colocada não o caracterize, o que pode ter levado um número significativo de respondentes a não escolher essa opção por receio de algum tipo de controlo interno das comunidades de fé.
Não existindo qualquer instrumento interconfessional para credenciação de pastores e ministros de Evangelho, a Ordem dos Pastores seria um organismo autónomo, negociado entre a AEP – Aliança Evangélica Portuguesa (igrejas evangélicas), o COPIC – Conselho Português de Igrejas Cristãs (igrejas reformadas), e a UAP – União Adventista Portuguesa (igrejas adventistas), com ligação a estes organismos. A função da OP seria a credenciação dos Pastores e Ministros do Evangelho, de acordo com os Estatutos e o Regulamento Interno próprios, reportando às organizações de que emana relatórios periódicos da sua actividade.
Como é óbvio, a OP não teria autoridade para impedir qualquer pessoa de exercer o seu ministério, apenas para credenciar, revalidar, recusar ou retirar credenciação. Por outro lado dificultaria a vida aos aventureiros, autoproclamados pastores mas sem preparação, dimensão ética comprovada ou legitimação. Por exemplo, no aluguer dum espaço para culto religioso, o proprietário poderia exigir a credencial actualizada da OP.
O sector protestante defender-se-ia assim desses “paraquedistas” que infestam o campo religioso protestante e reporia a credibilidade que vai fugindo de cada vez que surgem os escândalos e maus exemplos. Assim haja vontade política destes organismos de cooperação de igrejas em autorregularem o seu campo religioso.
Note-se que a igreja católica tem a sua própria organização, em sistema de pirâmide, e goza dum estatuto especial e dum direito particular (direito canónico) face ao estado, pela via da Concordata com a Santa Sé. Ou seja, dispõe de instrumentos próprios para gerir as suas dificuldades internas e exercer disciplina.
Há hoje uma divisa que se pode aplicar perfeitamente ao campo religioso. Em vez da famosa “revolução ou morte!”, será “autorregulação ou caos!”.