O Ministério da Saúde, através da DGS, publicou na passada semana o tão aguardado plano para o ciclo de temperaturas mais baixas, de outubro a março. Este ano, com riscos muito mais agravados para a população, fruto da coincidência temporal da COVID com a gripe.
Estranha-se que este plano só agora tenha visto a luz do dia, quando o outono já começou e muito do seu conteúdo exige ainda a implementação de medidas concretas, cuja execução demorará no mínimo mais algumas semanas.
É um bom plano nas intenções que comporta, no desenho da estrutura de resposta aos problemas, e nos princípios que defende. Não está, todavia, isento de dúvidas interpretativas e, sobretudo, de iniciativas ou propostas controversas e omissões que poderão ainda ser colmatadas.
No primeiro eixo estratégico (de resposta ao risco sazonal) a proposta mais importante e controversa é a criação de áreas dedicadas para todas as doenças respiratórias, em substituição das áreas dedicadas exclusivamente à COVID que até agora existiam. A proposta pressupõe um modelo de execução variável, dependendo do ritmo de crescimento epidémico da COVID: numa primeira fase, todos os Hospitais tratarão simultaneamente, doentes COVID e não COVID; numa segunda fase, haverá hospitais “COVID- free”, e uma ADR –M ( áreas dedicadas a doentes respiratórios – de base metropolitana), para as Regiões de Lisboa e do Porto. Não se sabe ainda quais os hospitais que concentrarão essa procura, mas esta ideia de juntar em grandes áreas todos os doentes respiratórios, para além dos riscos acrescidos, coloca problemas de orientação e de continuidade de cuidados que não serão fáceis de resolver. Do mesmo modo, a proposta de fazer circular da urgência hospitalar (ADR –SU) para o atendimento em cuidados de saúde primários (ADR –C) os doentes sem gravidade (cores azul e verde da triagem de Manchester), para além da antipatia e desconforto que vai causar na população, vai potenciar a eventual propagação do vírus de uns locais para outros. Como se percebe, há muita matéria a ser melhor esclarecida e eventualmente alterada.
Ainda neste eixo, o plano aponta para a consolidação (é exatamente esta a expressão usada) do plano de intervenção em ERPI (Estruturas Residenciais para Idosos). A formação profissional dos cuidadores dessas unidades, a garantia da vacinação contra a gripe de toda a comunidade, residente e em trabalho, a criação de equipas competentes para triar casos suspeitos, testar e reorganizar espaços de circulação e fruição para os utentes, a par da garantia de realização de testes antes da admissão, correspondem às principais medidas de consolidação. Todos sabemos que as ERPI não estão preparadas para estes desafios, e por isso mesmo a questão da formação é prioritária. Mas todo este processo levará semanas até podermos falar numa verdadeira consolidação. Será ainda para este outono-inverno?
Em todo o plano se nota uma preocupação central com os cuidados de proximidade, o que é louvável e pretende responder a uma das maiores lacunas do SNS. A referência à visitação domiciliária para as populações mais vulneráveis, independentemente dos seus locais de residência, a possibilidade de vacinação em novos e diferentes locais, a colheita de amostras biológicas em proximidade, incluindo o domicílio ou a dispensa de medicamentos em farmácia comunitária (porque não também no domicílio), são exemplos claros dessa preocupação, o que muito se enaltece.
No segundo eixo estratégico – “Manutenção da resposta não COVID” – realce-se a criação de uma task-force para a resposta não COVID. A redução da atividade clinica nos centros de saúde e nos hospitais iniciou-se logo em março e acentuou-se dramaticamente nos meses seguintes, nalguns casos com quebras superiores a 50% da atividade face a período homólogo do ano anterior. Seria expectável que as administrações fossem ajustando a reabertura das atividades à medida que se ia percebendo o reduzido impacto da pandemia na atividade dos serviços. Infelizmente, nada se fez de robusto até agora, e mesmo o receio dos doentes já deixou há muito tempo de ser um argumento válido. É, por isso, intrigante constatarmos os atrasos que se vêm acumulando sem soluções à vista e a constituição desta task- force só seis meses depois da interrupção da atividade. Até este trabalho preparatório estar concluído, decorrerão ainda algumas semanas, aumentando, entretanto, o número de doentes em espera.
Neste segundo eixo estratégico deixa-se um apelo à “maximização da resposta dos cuidados de saúde primários “aos doentes não COVID. Sabemos do apoio inestimável que muitos ACES deram à vigilância de muitos doentes COVID. Mas nada justificou o encerramento de consultas, a não renovação terapêutica ou a supressão do simples atendimento telefónico, que ocorreu um pouco por todo o país, como se viu nas queixas de muitas pessoas, reportadas pela comunicação social. Por outro lado, os CSP têm tido desde sempre pouca simpatia pelos contactos de proximidade, mormente pela visita médica domiciliária. Este plano refere, várias vezes, a importância da visitação domiciliária dos CSP a populações mais vulneráveis, e seria bom que tal apelo não caísse em saco roto, com até aqui. Confesso o meu ceticismo no seu sucesso.
Quanto aos hospitais, destacarei a ideia de criar unidades de retaguarda nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, como forma de libertar camas “agudas” e drenar melhor os doentes com alta clínica. É uma novidade do plano que não sabemos, ainda, como se irá concretizar e que, naturalmente, exige tempo e recursos.
Termino com uma sugestão que poderá ser ainda incluída neste plano.
Devia ser criado um percurso privilegiado e mais simples para as pessoas mais velhas, quer no acesso COVID quer no não COVID, que contemplasse:
a) Consulta médica domiciliária dos CSP, após primeira avaliação telefónica;
b) Vacinação para a gripe no domicílio, após avaliação das capacidades cognitivas e de locomoção;
c) Nos casos de suspeita de COVID, os testes deverão ser realizados no domicílio (lar ou outra estrutura residencial) e, nos casos a necessitar de internamento, dever-se-á adotar um protocolo de internamento direto que evite a passagem pelas ADR ou pelos serviços de urgência.
Esta discriminação positiva dos idosos justifica-se plenamente, pois são as populações mais vulneráveis, quer à COVID quer às doenças respiratórias em geral e à gripe em particular. Convém lembrar que cerca de 70% dos óbitos por COVID ocorre nos infetados com mais de 80 anos e cerca de 20% nos que estão na faixa etária entre os 70 e os 80 anos. Poder-se-ia começar pelas pessoas com mais de 80 anos, avaliar os resultados e avançar depois para o grupo dos 70/80 anos. Neste processo, o SNS deveria envolver, as autarquias, os setores privado e social, a Segurança Social e mobilizar mais recursos materiais e humanos. O aumento de despesa por esta via é um dever de solidariedade dos portugueses para com as pessoas mais vulneráveis e em maior risco. E por isso bem justificado.