Aluga-se quarto com tudo. Água, luz, gás e net.” Escrito à mão, fotocopiado e espalhado pelas paredes da estação. Aqui nestes lados, à falta de dinheiro para uma casa, negoceia-se um quarto com “tudo”. Aqui nestes lados, famílias com várias crianças dividem um quarto e uma cama, dormem apertados e comem o que as moedas renderem no supermercado, carregam os pequenos às costas e ao colo para encontrar uma creche a quilómetros de casa, dormitam assim que se sentam, a exaustão é o ar que se respira. Aqui nestes lados, saem por segundos do comboio para entregar 5 euros a uma prima que pede emprestado, e continuam viagem para outras paragens e apeadeiros. Aqui nestes lados, saem de casa às 5 da manhã e chegam às 11 da noite para deitar o corpo no colchão por umas horas, para que a máquina continue a funcionar no dia seguinte. São maioritariamente imigrantes e afrodescendentes.
A cidade que não existia é o título do novo livro do fotógrafo Alfredo Cunha e de uma exposição fotográfica sobre a Amadora da década de 70 e dos dias de hoje, aberta ao público até 15 de novembro na Galeria Municipal Artur Bual. A ribeira da Falagueira corre suja, a olhos vistos, e as casas erguem-se de estacas sobre as águas imundas e o lixo que escorre, as crianças brincam junto às barracas no meio dos despojos, sobrevivendo na pobreza extrema. As fotografias são de uma tristeza carregada que contrasta com a alegria da revolução, em que um grupo grande de crianças montadas num tanque festeja a liberdade. Na década de 70, esta terra acolhia alentejanos fugidos da fome para a cintura industrial de Lisboa, e beirões à procura de uma vida melhor, para lá do cultivo pobre do minifúndio. Estas fotografias são da Amadora, mas podiam ser de muitos outros lugares iguais em miséria na década de 70 do século passado.
Muita coisa mudou para melhor nestes 50 anos, não há como negar. A revolução de Abril e o poder local democrático construíram uma melhoria significativa das condições de vida das populações. As lutas operárias obrigaram a melhores salários, a saneamento básico, a escola pública, ao SNS, a melhores acessibilidades e espaços de lazer. As barracas praticamente desapareceram, sem que isso signifique que tenham sido sempre acompanhadas de soluções habitacionais adequadas. A desindustrialização resultou na liquidação de milhares de postos de trabalho e desemprego, venceu a especulação imobiliária e o monopólio das grandes superfícies comerciais.
A cidade que era freguesia passou a ser terra de comunidades afrodescendentes e imigrantes que só conhecem precariedade, trabalham mais de 12 horas por dia para receber um salário de miséria na construção civil, nas limpezas, na segurança. Os serviços públicos de saúde e educação rebentam pelas costuras, não respondem à densidade populacional de 7 400 habitantes por quilómetro quadrado. Estes são problemas do País, não são problemas locais. As desigualdades estruturais devem ser combatidas todos os dias, através de uma melhor distribuição da riqueza, do aumento dos salários e das pensões, de mais e melhores serviços públicos, de habitação a custos acessíveis, de melhores transportes.
Tanta coisa mudou para melhor nestes 50 anos, mas tanta gente continua a sobreviver.
(Opinião publicada na VISÃO 1437 de 17 de setembro)