Uma análise à história do nosso País, à sua situação económica e social e às bases constitucionais da atual democracia portuguesa já nos dá razões de sobra para nos indignarmos com o facto de Pedro Passos Coelho, Aníbal Cavaco Silva ou o cardeal D. Clemente terem assinado uma petição contra a obrigatoriedade da disciplina Educação para a Cidadania e Desenvolvimento nas escolas. O programa curricular da disciplina, além de uma vertente de utilidade prática ao quotidiano de qualquer cidadão, tem como objetivo educar para os princípios fundamentais da democracia e de direitos humanos, intrinsecamente ligados.
Mesmo se motivos não houvesse cá dentro, a capacidade de pensar Portugal inserido no mundo, e particularmente na Europa, seria muito elucidativa sobre a necessidade imperativa da disciplina. Porém, parece que, mesmo em personalidades que já ocuparam os mais altos cargos da democracia de Portugal enquanto Estado-membro da União Europeia (UE), essa capacidade está ausente. E esperava-se mais dos nossos ex-governantes. Esperava-se que Cavaco Silva e Passos Coelho soubessem já que a UE, apesar de ter começado como um projeto de mercado comum, foi apenas o início da concretização de uma antiga ideia de paz na Europa, de desejo dos pais fundadores de que os Estados europeus nunca mais voltassem às guerras que durante séculos assolaram o continente. Esperava-se que soubessem que a intenção foi terminar com os nacionalismos, cujas consequências mais graves levaram a duas guerras mundiais. Esperava-se que se mostrassem conscientes da gravidade do holocausto, da perseguição e extermínio de milhões de judeus, homossexuais, ciganos ou pessoas com deficiência. Ou simplesmente daqueles que tinham uma opinião política diferente. Esperava-se que compreendessem que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, adotada em 1950, e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a funcionar desde 1959, foram um passo fundamental para não se repetirem erros históricos, mas não dão nada por garantido. Esperava-se que soubessem que, tal como antes, continua hoje a ser imperativo estabelecer a igualdade entre e o respeito pela diferença étnica, de género, de orientação sexual, de opção religiosa, de nacionalidade. Isto não é ideologia, são valores fundamentais da democracia! Esperava-se ainda que se lembrassem que uma das razões pelas quais o PSD foi um acérrimo defensor da adesão de Portugal à CEE nas primeiras eleições legislativas livres depois da ditadura, em 1976, foi pela necessidade de consolidação da jovem democracia portuguesa.
É certo que Cavaco Silva e Passos Coelho são homens políticos do pós-guerra, não viveram de perto os horrores das Primeira e Segunda Guerras Mundiais para terem percebido o que quis dizer Robert Schuman quando fez a declaração que fundou a primeira comunidade europeia, em 9 de maio de 1950, advertindo que o fim da guerra não significava a paz adquirida. Porém, as oportunidades que a vida política lhes deu, juntamente com a capacidade de discernir além do imediato e do foro meramente económico, seriam suficientes para compreenderem a importância da educação para a cidadania nos nossos dias. Foi enquanto Primeiro-ministro de Portugal que Cavaco Silva assinou o Tratado de Maastricht, que tornou a CEE em UE, extravasando o caráter meramente económico da integração europeia, dando-lhe um cariz político, criando a Cidadania Europeia, no sentido de construir uma Europa em que as liberdades não fossem apenas económicas, mas também sociais e incrementassem o sentido de pertença europeia das pessoas, abrindo um espaço onde elas pudessem circular livremente, procurar emprego e residir em qualquer país membro.
Ou terá sido isto meramente acessório para Cavaco, que nos anos 80 seguia avidamente a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, para quem a Europa só interessava pelo mercado livre? O antigo primeiro-ministro não deveria esquecer que foi precisamente o cariz social (ainda que mínimo) e de coesão da CEE que beneficiou fortemente os seus mandatos governamentais, com uma avalanche de fundos financeiros que lhe permitiram realizar um investimento público sem precedentes. Foi ainda com Cavaco como Presidente da República que Portugal assinou o Tratado de Lisboa, que tornou a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia juridicamente vinculativa ao nível europeu no que toca às ações da UE, oferecendo assim um nível jurídico acima dos Estados para proteção desses direitos.
Já quando Passos Coelho liderou o governo português, os cidadãos da UE ultrapassavam tempos tumultuosos. Não só pelas repercussões sociais da grave crise económica e financeira que se fazia sentir, em Portugal especialmente com a presença da troika, mas também porque se assistia a um recrudescimento de nacionalismos, xenofobias e extremismos políticos, perigosos para o futuro das democracias europeias. Não foram apenas os nacionalismos políticos, foram também preconceitos do Norte contra o Sul da Europa, que a governação de Passos bem sentiu. Recorde-se que, face à grave crise social e de desemprego que Portugal atravessava, um dos conselhos do então Primeiro-ministro foi que os portugueses “saíssem da sua zona de conforto”, vulgo, emigrassem. Diga-se que, desde que existe livre circulação, a “saída da zona de conforto” para qualquer país membro da UE se tornou um pouco menos “desconfortável”. A solução dada por Passos beneficia então da Cidadania Europeia, mas isto apenas enquanto as condições políticas o permitirem e os movimentos extremistas e nacionalistas não forem suficientemente influentes para fazer reverter o processo, como já é exemplo o Brexit. Parece então que a educação para a cidadania é crucial para a receita de Passos para os problemas nacionais.
Estou certa de que se explicarmos isto aos nossos ex-governantes, eles compreenderão as suas incongruências. Então, talvez eles possam ser acolhidos nas escolas e frequentar a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. Temos excelentes professores, que apesar de verem a sua profissão desvalorizada, têm sentido cívico e dever de cidadania para continuar a educar para a cidadania. Quanto a D. Clemente, poderá ser dispensado das aulas, basta ouvir o Papa Francisco.