A profissão médica tem estado no topo das notícias a propósito do recente diferendo entre o Bastonário e o Primeiro – Ministro. Há quem fale em arrogância e corporativismo, de um lado, e de falta de respeito e desconsideração, do outro lado.
Importa, por isso, distinguir os planos de análise quando falamos desta profissão: os médicos, no seu exercício profissional; a Ordem, enquanto “associação pública profissional” reconhecida pelo Estado, como entidade de regulação da atividade médica para segurança e defesa dos doentes; o bastonário, como líder, com as suas idiossincrasias, a sua orientação, a sua equipa e o seu estilo.
1. OS MÉDICOS PORTUGUESES
É ancestral o reconhecimento da competência dos médicos portugueses ao longo da história da profissão. As Escolas Médicas portuguesas estiveram sempre no pelotão da frente em matéria de formação académica e profissional, ombreando com as melhores escolas médicas do mundo. A cultura do hospital universitário, em que a formação em exercício se combina com a formação em sala ou em laboratório, tem uma enorme tradição em Portugal, graças também ao papel do Estado no seu financiamento e na sua orientação (não há ainda escolas médicas privadas), com resultados excelentes na prática clínica e na capacidade de atualização. O acesso dos nossos médicos às tecnologias mais modernas tem sido possível sem grandes atrasos, não só porque o SNS assume, habitualmente, os novos investimentos, mas também porque outras entidades se posicionam no apoio aos médicos, na sua formação e no seu aperfeiçoamento ou atualização, no país e no estrangeiro.
O perfil do médico português é, assim, prestigiado e reconhecido pela comunidade, e as suas competências beneficiam toda a população portuguesa, pois a grande maioria trabalha, em parte significativa do seu tempo, no SNS.
Da minha parte, e como gestor de hospitais públicos ao longo de uma vida, reconheço a excelência da qualidade clinica da grande maioria dos nossos médicos, e aponto apenas duas falhas na sua formação: a) insuficiência de competências em relações humanas, o que prejudica, por vezes, o relacionamento com alguns doentes; b) ausência de formação em governação clínica, o que limita a avaliação e a comparabilidade dos resultados e a gestão eficiente dos recursos. Esta última falha é, muitas vezes, fator de algumas tensões entre os médicos e as administrações e direções clínicas dos hospitais. São diferendos naturais e até saudáveis, mas o que importaria, aqui, é que o trabalho médico fosse mais sensível às questões relacionadas com a organização dos serviços, a racionalidade no uso de recursos e a avaliação objetiva de processos e de resultados. Reconheço que temos hoje uma nova geração de médicos mais despertos para estes problemas, mas seria bom que as suas lideranças fossem também sensíveis a estes desafios.
Os médicos portugueses, como acontece noutros países, vivem sempre num dilema até agora sem solução: os desafios da prática clinica e da experiência – muito mais aliciantes no serviço público, pelo volume e complexidade dos casos – não são compagináveis com as remunerações a que aspiram e a que têm legítimo direito. Por isso, a grande maioria dos médicos opta por acumular funções com o setor privado, em que o regime de incentivos lhes permite compor confortavelmente o seu nível de rendimentos. Isso provoca-lhes um enorme desgaste
profissional, deslocações constantes, ausência de horários de descanso adequados e, por vezes, dificuldade em cumprir os seus compromissos em todos os lados. Quebrar este círculo vicioso não é tarefa fácil, mas passa, naturalmente, por alterar o pagamento aos médicos no SNS, com salário – base mais elevado e a adição de um modelo de incentivos que premeie o desempenho, em quantidade e qualidade. Penso que os médicos, em termos gerais, anseiam por propostas do Governo que lhes proporcionem um rendimento condigno e garantam estabilidade do local de trabalho e horários mais humanizados. Seria bom que os portugueses soubessem como é que a Ordem dos Médicos encara esta questão.
2. A ORDEM DOS MÉDICOS
A existência de Ordens profissionais está reservada, apenas, a algumas profissões de relevante interesse público (“as associações públicas profissionais”), para as quais o Estado reserva e delega as suas competências originárias, em matéria de controlo do acesso e exercício profissional, elaboração de normas técnicas e deontológicas específicas e regime disciplinar autónomo, tudo em defesa dos cidadãos que esses profissionais servem.
A Ordem dos Médicos, criada em 1938, é uma das mais antigas e prestigiadas a nível nacional e tem prestado, por inerência das suas competências, relevantes serviços ao país e aos portugueses. Nos últimos anos, todavia, tem privilegiado uma intervenção de natureza exclusivamente corporativa, juntando-se aos sindicatos no auto-denominado “Forum Médico”, que mais não é do que a caixa-de-ressonância dos interesses sindicais deste profissionais.
A defesa do interesse público tem sido secundarizada e são múltiplos os exemplos em que a Ordem toma mesmo posições que lhe são contrárias em áreas como, o acesso a cuidados de saúde, a colocação de médicos em zonas carenciadas, a visitação médica domiciliária (o caso de Reguengos), o travão à formação médica (o Governo conseguiu desarmar a posição egoísta da OM com a recente autorização para que a Universidade Católica crie um novo curso de medicina) ou até a teleconsulta ou o aconselhamento médico por telefone, em que a OM tem adotado, até há pouco tempo, as posições mais conservadoras e imobilistas.
Os portugueses, e até alguns médicos, vêm na OM, apenas, a representante dos interesses dos médicos, quando não é exatamente assim. O interesse público é prioritário no papel das Ordens. A defesa dos interesses gerais dos destinatários dos seus serviços é uma das suas atribuições básicas. E os interesses remuneratórios ou sindicais estão afastados liminarmente do seu múnus.
A Ordem dos Médicos tem-se evidenciado, assim, e nos últimos anos, muito mais como estrutura corporativa ao serviço dos médicos do que ao serviço do interesse público, criando, por essa postura, zonas de conflito e de desgaste permanente com sucessivos governos, em que os cidadãos saem sempre a perder. Desse modo, tem descurado o seu principal papel em matérias importantes. Não basta traçar normas de atuação quando a seguir nada acontece em matéria de verificação e acompanhamento. A autonomia médica, tão cara aos profissionais, não pode nem deve inibir a OM no seu papel insubstituível de garante das boas práticas, prevenindo mais do que penalizando o que, por vezes, não tem remédio. Do mesmo modo, a atribuição de um título de especialidade ou de subespecialidade, deveria ter consequências para aqueles que as exercem sem esse título, outra questão em que a OM parece atada e não quer intervir.
A mera listagem dos médicos em exercício em Portugal é uma fonte de erros e omissões injustificáveis numa Ordem profissional. Não sabemos quantos médicos exercem e aonde trabalham. A lista está permanentemente desatualizada e estima-se que 30% dos inscritos já não exercem por diferentes motivos. Este trabalho de reorganização e de intervenção da Ordem no campo deontológico, de transparência, de planeamento de necessidades e de defesa dos interesses e segurança dos doentes, está completamente abandonado e urge retomá-lo com a maior urgência.
3. O BASTONÁRIO
Ao longo dos anos têm passado pela liderança da Ordem, médicos reputados, pela sua cultura, pelo seu curriculum profissional e pela sua capacidade de liderança de serviços e equipas profissionais em instituições de grande prestígio. Distingo, sem querer ser injusto para os restantes, Miller Guerra, Gentil Martins, Machado Macedo, Santana Maia, Carlos Ribeiro ou Germano de Sousa. O seu desempenho foi pautado por uma visão ampla dos problemas da saúde, corporativa quanto baste, mas imbuída de um espírito construtivo e de diálogo com as outras profissões da saúde, com os governos e com os cidadãos. Com isso ganhou o país e os doentes.
Infelizmente, nos últimos anos parece que a OM reduziu as suas preocupações a um ataque sistemático a este Governo, pela voz do seu bastonário, porque não investe, não contrata ou não entrega serviço ao setor privado. A referência permanente à falta de médicos e de outros recursos é todos os dias desmentida pela realidade dos gastos do SNS, pela competência com que o SNS vem respondendo á pandemia, pelo número de profissionais contratados, pelas vagas abertas, etc., a crescer como nunca nestes últimos anos e invertendo a lógica de contração da despesa pública do governo PSD/CDS. O bastonário tenta sempre negar os números, atribuir as mais maquiavélicas intenções aos seus autores, com deselegância e má-fé, entrando num jogo mais próprio da disputa política do que de uma Ordem profissional. Esta postura agressiva e “vigilante” contrasta com o “desinteresse” ou “excesso de confiança” com que o bastonário (não) olha para o setor privado, sobre o qual nunca se pronuncia.
Após o episódio de Reguengos, as pazes com o Governo, que pareciam estar escritas nas estrelas, esfumaram-se em poucas horas, as necessárias para que o Bastonário percebesse que o Primeiro – Ministro o tinha, afinal, enganado. Ficou, como se esperava, a falar sozinho.