O último suplemento de humor do Público fez a capa com um cartoon de Nuno Saraiva sobre a manifestação em Lisboa tipo Ku Klux Klan, a criminosa organização dos EUA, símbolo máximo do racismo. Manifestação que tem de se enquadrar na recente ofensiva que inclui uma onda de ataques, ameaças e condutas classificados de extrema-direita, mas que em geral são tão neonazis quanto por agora o podem ser.
O cartoon representa um grupo de oito manifestantes, em fila, com tochas e máscaras, sendo que o quinto deles veste o que aparenta ser uma farda da PSP – à qual no texto não há qualquer referência. Pois bem, isto é, pois mal: a direção da PSP anunciou, em comunicado, a apresentação de uma queixa-crime contra o autor do desenho (e, decerto, os responsáveis do jornal). Quando ouvi a notícia, nem queria acreditar! Porque é preciso não ter nenhuma noção do que é a liberdade de expressão e o direito à crítica, mormente quando exercidos através da linguagem e dos códigos próprios da caricatura e da sátira, para apresentar tal queixa. O que é espantoso, para não dizer inadmissível, numa instituição como a PSP.
Talvez, nos últimos oito anos da ditadura, advogado recordista em processos de “abuso de liberdade de imprensa”, como defensor de réus no que então chamava “crime impossível” – como se podia abusar de uma liberdade que não existia? –, este caso lembrou-me um outro, desse tempo, que ficou famoso: o do poster de João Abel Manta sobre o Festival da Canção. O poster tinha como fundo a nossa bandeira, mas no lugar da esfera armilar havia um microfone e os dentes da boca aberta de uma mulher por trás dele a cantar. O grande artista foi acusado de ofender o símbolo da Pátria e, por isso, ultrajar a própria Pátria, num processo com lances que não posso esquecer. Mas, mesmo nessa altura, João Abel foi absolvido…
O que pode prejudicar ou afetar o prestígio e a imagem da PSP é ela apresentar esta queixa-crime, não o cartoon seu absurdo motivo ou pretexto. Mesmo admitindo, apenas para este efeito, que um dos oito “bonecos” da ilustração tem a farda de polícia, é um polícia – não a PSP… O que se me afigura não só legítimo como compreensível, face ao que parece resultar de comportamentos de alguns agentes da corporação, inclusive aquando da manifestação em frente ao Parlamento, bem como face à constante tentativa de aproveitamento das polícias, e apelo aos polícias, por movimentos extremistas na base ou próximos de organizações como a da referida manifestação. O que não se me afigura compreensível, e ainda menos curial, é que a direção da PSP que emitiu o comunicado a anunciar a queixa não haja nunca, se não erro, emitido um comunicado, claro e firme, a denunciar as tentativas de aproveitamento e instrumentalização da polícia e de polícias e ditas forças ultras. Isto apesar de, já em 2018, um relatório do Conselho da Europa alertar para infiltrações da extrema-direita na PSP. O que um agente, então vice-presidente da ASPP, no final de 2019 também denunciou. Com que resultado? Foi ele alvo de um processo disciplinar, cujas conclusões não foram tornadas públicas – ou, se foram, não consegui ‘‘descobrir’’.
(Opinião publicada na VISÃO 1433 de 20 de agosto)