Acontecimentos recentes na área da Saúde obrigam-nos a uma reflexão atenta para lhes darmos uma explicação consistente e lógica. Nem sempre o que parece é e nos exemplos que vamos analisar é um pouco isso que se passa.
1. A festa do Avante
Os comunistas insistiram, o governo cedeu e a DGS validou. Iremos portanto ter festa do Avante para albergar 100 mil visitantes durante 3 dias. Lê-se e custa a acreditar em tanta insensatez. Dos que insistiram, esquecendo-se da enorme antipatia que isso provoca na maioria dos portugueses e do desprestígio que as consequências de um surto sem precedentes lhes pode infligir. Do governo, que com esta decisão legitima todas as pressões dos setores ainda confinados (espetáculos, festivais de verão, desportos, bares e discotecas,etc.) e poderá fazer hara-kiri, se as coisas correrem mal. Da DGS, que com este gesto atira por terra todo o trabalho de persuasão para o distanciamento social que vem fazendo diariamente, há cerca de meio ano. Estranha forma de vida esta, em que por trás das decisões estão jogos de equilíbrio de poder e fidelidades indisfarçáveis. Aonde cabe a saúde e o interesse público?
2. Sputnik V – a nova vacina
Putin surpreendeu o mundo ao anunciar a primeira vacina contra a SARS – CoV – 2 já para outubro – a Sputnik V em homenagem aos feitos heróicos da URSS na descoberta do espaço.
Esta vacina parece querer saltar etapas, cientificamente incontornáveis para garantir segurança e eficácia. A surpresa e desconfiança dos centros de investigação parece ter sido generalizada, porque falta volume de casuística que, tendo tomado a vacina e sendo exposta ao vírus, não seja contaminada. A filha de Putin parece ter já tomado o novo produto, sem registo de efeitos secundários. Pois, mas isso não chega e é até irrelevante e grotesco. Putin, como outros lideres mundiais nossos contemporâneos, tornam a nossa vida mais insegura e perigosa. Não nos despertam especiais simpatias, lutam pela sua própria sobrevivência e os interesses dos cidadãos são o que menos conta. Quem estará disponível para tomar a vacina de Putin? Estranho mundo este!
3. Corredores turísticos livres de COVID
O Reino Unido iniciou uma política seletiva para facilitar as saídas de férias dos seus nacionais que o CDCD implicitamente subscreveu. O único critério utilizado é o número de infetados por cem mil habitantes nos últimos 14 dias. Este indicador é manifestamente insuficiente para credibilizar a confiança em países em que o vírus está instalado há mais de 6 meses. Mas tem outro grave inconveniente: o feitiço pode rapidamente virar-se contra o feiticeiro. Este vírus não aparece, cresce e desaparece de forma uniforme e linear em todos os territórios. A liderança política, as medidas de confinamento e de desconfinamento adotadas em cada momento, as infraestruturas disponíveis, o nível de desenvolvimento socioeconómico, alguns fatores imponderáveis e os níveis de rigor e transparência, vão determinar o perfil e a trajetória, mas o risco de novas vagas é sempre grande. É isso que tem sucedido por todo o mundo e os que num momento parecem estar melhores podem rapidamente mudar de posição. Estamos agora por cima, mas já estivemos por baixo. Como jogar com esta volatilidade numa questão tão séria como facilitar ou dificultar os fluxos turísticos? O indicador não é operacional, é manifestamente insuficiente e inadequado e parece estar a ser utilizado com muita habilidade…Saibamos impor-nos nesta janela de oportunidade, aproveitando o privilégio de estarmos a organizar a final da Champions.
4. O estranho contencioso de Reguengos de Monsaraz
Uma grande parte dos óbitos com COVID ocorre nos lares (mais de 40%), por duas razões fundamentais: concentram, numa área pequena e confinada, muitas pessoas com idade avançada, portadoras de doenças crónicas e muito fragilizadas; são estruturas sem “expertise” na área da saúde, sob a alçada da Segurança Social e consideradas como residências para pessoas idosas em que se presta apoio social e cuidados de enfermagem (Portaria 67/2012 de 21 de março).É tempo de encarar esta questão de uma forma radicalmente diferente, considerando-as “instituições de manutenção da saúde”, com todas as consequências que isso implica. Não é aceitável que estas instituições, que tomam conta de pessoas com graves e permanentes problemas de saúde, continuem sem ter competências médicas ou, pelo menos, uma afiliação permanente com instituições médicas. Em Reguengos, em Vila Real, no Porto, em Cinfães, em Resende, em Albergaria-a-Velha, em Lisboa,etc., nos lares legais e nos lares clandestinos. É lá que vive cerca de 40% da população portuguesa com mais de 65 anos e essas pessoas merecem mais atenção e proteção do Estado.
A OM e os sindicatos médicos deram uma enfase particular à tragédia que se passou no lar de Reguengos. Durante a dura batalha das autoridades de saúde e da proteção civil para poupar vidas, aconselharam os médicos dos centros de saúde e do Hospital de Évora a não se deslocarem ao lar, porque não seria adequado e os doentes são para ser vistos nos hospitais e não em estruturas impróprias. Pediram a demissão do Presidente da ARS Alentejo, precisamente porque este pretendia mobilizar os médicos para avaliarem os doentes no lar ou na estrutura de campanha entretanto montada. Entre os argumentos invocaram as férias marcadas, o excesso de trabalho e o local de trabalho (fora do concelho).
Esta aparente insensibilidade foi, felizmente, corrigida com a rapidez com que a OM desenvolveu um putativo inquérito ao que se passou com as mortes de Reguengos. A gravidade dos acontecimentos parecia ser particularmente inusitada no contexto das centenas de mortes ocorridas em lares. Os resultados conhecidos dessa averiguação não são particularmente esclarecedores e parecem marcados por insuficiências de método e probidade que com certeza se esclarecerão depois. Tem a OM competências para avaliar instituições fora da sua órbita de intervenção? E com a autorização e /ou o conhecimento prévio, de quem? Qual a informação recolhida, de que fontes, como e em quanto tempo? Foram ouvidas todas as partes envolvidas (cuidadores, autoridades municipais, de saúde e de proteção civil, utentes e familiares, profissionais do lar, médicos e enfermeiros do ACES e do Hospital, as administrações do hospital de Évora e do ACES)? E que regras de audição e de registo foram adotadas? Há um relatório publicado e este contém conclusões que identifiquem objetivamente os erros de conceção, de estrutura ou de organização, falhas nas dotações de pessoal ou comportamentos negligentes de responsáveis e/ou operacionais? Não sabemos, mas a acreditar nos comentários já registados junto de alguns daqueles intervenientes parece estarmos perante algo pouco sólido e ainda confuso. Vamos aguardar futuros desenvolvimentos, da Ordem dos Advogados (outra curiosidade) e da Procuradoria-Geral da República.
5. Travão à formação médica
Já expressei nesta coluna a minha discordância e incompreensão pela decisão unanime das Escolas Médicas em rejeitar abrir mais vagas para o ingresso no curso de medicina, num país que tem muitos doentes em lista de espera e sem acesso a cuidados de saúde. Sabemos que um bem escasso é mais valorizado, mas em matéria de saúde a escassez de médicos pode significar mais doentes, mais sofrimento e mais mortes. A campanha orquestrada para justificar o absurdo não demorou a instalar-se, com argumentos que não resistem a um escrutínio simples e objetivo:
a) As referências das principais agências internacionais sobre o número de médicos em exercício de funções em Portugal baseiam-se nos registos da Ordem dos Médicos, desatualizados e inflacionados com médicos que já não exercem. As instâncias internacionais recomendam que se desconte cerca de 30% dos números indicados. Se assim for, contabilizaremos 3,48 médicos por mil habitantes, o que coloca Portugal numa posição abaixo da média da EU (3,7);
b) O número de médicos que acumula funções entre o setor público e o setor privado ou social é superior a 50%, facto que retira eficiência significativa ao primeiro, e provoca extensas listas de espera no SNS, de forma dramática e permanente;
c) Todos os anos ficam por preencher muitas vagas abertas pelo SNS para concursos médicos, de ingresso, para formação especializada e para acesso a lugares em zonas mais carenciadas do território nacional, mesmo com significativos incentivos;
d) Gastamos, do erário público, mais de 6 milhões de horas extraordinárias em trabalho médico por ano e, ainda, mais de 100 milhões de euros para pagar a empresas de trabalho médico temporário;
e) Vivemos numa situação de pleno emprego médico em Portugal, o que torna o mercado pouco flexível e os valores a pagar, em situações de carência, obscenos, como aliás os sindicatos médicos denunciam. Percebe-se quem gosta e ganha com este estado de coisas, em que as manifestações de interesses se cruzam e complementam. Sairá daqui uma nova, e desta vez, vencedora oportunidade para uma faculdade de medicina privada?
Mais vagas e mais médicos permitiriam flexibilizar o mercado, fixar o trabalho médico, sem dispersões e multiplicidade de locais de trabalho, preencher as vagas no interior do país ou no Algarve e acabar com a especulação das empresas de trabalho temporário. Complementarmente, as remunerações médicas deveriam ser substancialmente melhoradas e a concorrência ditaria depois a colocação dos melhores. Haveria médicos para todos os portugueses em todos os pontos do País.