Ainda sou do tempo em que figuras gradas do PS diziam a plenos pulmões que a grande virtude da formação da “geringonça” residia na devolução da centralidade política ao Parlamento. Afirmou-o António Costa, subscreveu-o Eduardo Ferro Rodrigues, exaltou-o Carlos César, gabou-o Manuel Alegre, sublinhou-o Ana Catarina Mendes, enfatizou-o Pedro Nuno Santos, assim como o reproduziram tantas segundas linhas incapazes de desafinar da melodia celestial que nos era apresentada.
Habitávamos o remoto 2015 (ou até anos mais recentes) quando foram feitas algumas dessas profissões de fé no parlamentarismo e no reequíbrio entre os poderes dos órgãos de soberania. Tinha, finalmente, chegado a altura de os portugueses se consciencializarem de que o Governo emana da Assembleia da República e de que o hemiciclo, como em qualquer sistema representativo recomendável, é bem mais que um formalismo constitucional ou um passador legislativo.
Ainda que em política o que hoje pareça verdade possa amanhã tornar-se mentira, envelheceram mal os desejos de uma longa vida à cultura de negociação e ao ritual de prestação de contas perante os deputados. Bastou aparecer o solícito Rui Rio para o poliamoroso António Costa trocar as juras de fidelidade eterna à maioria de esquerda por um affaire indecoroso com o líder do maior partido da oposição.
É certo e sabido que o primeiro-ministro, por ter uma relação tumultuosa com o escrutínio público, respiraria melhor sem ter de estar quinzenalmente na casa da democracia a debater a condução política do País. Saiu-lhe na rifa um presidente do PSD que ainda é mais avesso à maçada de se digladiar, na arena da dialética, com aqueles que perfilhem visões antagónicas à sua. Não nos iludamos: Rio não quer um Parlamento “poucochinho” (como lhe chamou Luís Fazenda) por interesse nacional; pretende acabar com a “gritaria” dos quinzenais porque é numa democracia de mínimos em que se sente mais confortável.
A revisão do regimento da Assembleia da República, uma cruzada de Paulo Portas, que contou com a anuência de José Sócrates e foi coordenada por António José Seguro, concretizou aquilo para que a Constituição já apontava: o primeiro-ministro não é primus inter pares; a sua presença no Parlamento não é suprível pela convocação de um qualquer titular de uma pasta setorial. Quatro horas mensais – é disso que se trata! – a responder aos escolhidos pelo povo não são uma tarefa de somenos, um frete ou uma chatice.
Com a abolição dos debates quinzenais, ancorada numa narrativa anti-parlamentar simplista e numa retórica de desqualificação dos próprios eleitos, a sociedade Costa&Rio está a estender a mão aos batalhões de indignados das redes sociais que entendem que os deputados são videirinhos e ociosos e que veem um idílio numa câmara entregue a meia dúzia de tarefeiros (mesmo que beliscando os princípios da proporcionalidade e da representatividade). Com esta ideia peregrina, os líderes socialista e social-democrata alistam-se no pelotão de André Ventura e caucionam o argumentário de contestação à III República do presidente do Chega.
Perante a urgência do momento, convém sublinhar a coragem daqueles – poucos – que até à publicação deste artigo ousaram desafiar o autoritarismo vigente, que resistiram e disseram “não”. Haja ou não disciplina de voto, violem ou não os ditames dos diretórios partidários, a votação desta quinta-feira, 23, traçará uma linha moral dentro das maiores bancadas. É chegada a hora de os deputados do PS e do PSD mostrarem a sua tenacidade, de salvaguardarem a sua honradez e de protegerem a respeitabilidade do órgão de soberania para o qual foram eleitos através do voto de todos os portugueses. Os líderes caem, as maiorias mudam, as instituições ficam. Não falhem à democracia.