Raquel Varela escreveu um texto no Facebook, que tem sido muito comentado e partilhado, sobre o problema das mortes rodoviárias em Portugal, dizendo que o nosso país tem “uma das mais altas taxas de morte nas estradas”, a propósito do atropelamento mortal de uma jovem de 16 anos em Lisboa, no sábado. Uma das mais altas taxas do mundo? Não: a nossa média é um terço da média global. Da Europa? Não: também ficamos abaixo da média europeia. Da União Europeia? Não: há oito países em pior situação. Da Península Ibérica? Não: Andorra tem mais mortos do que nós, proporcionalmente à população. Segundo a OMS, a média mundial de mortos na estrada é 18,2 por cem mil habitantes. A europeia, 9. A portuguesa, 6,3.
Mas a primeira comparação que a professora universitária faz é com a Alemanha, que efetivamente tem uma taxa de mortalidade mais baixa: 3,7 por cem mil habitantes. Mas isso são os números atuais. A Alemanha de que Raquel fala é a que conheceu quando foi para lá estudar, aos 18 anos, quando via com estranheza a “colega de casa, estudante de medicina, ir às 6 da manhã, feliz, de patins, com frio, neve, para a Faculdade”. “Havia esfera pública. Pensei, caramba!, que lugar evoluído.” Esse lugar idílico rondava na altura 10 mortos por cem mil habitantes. Ou seja, morria (muito) mais gente nas estradas na espetacular Alemanha de finais dos anos 90 do que no deplorável Portugal de hoje.
A historiadora segue depois para uma cena da sua infância, na Zambujeira do Mar, para demonstrar que antigamente é que era bom. Era ela “muito pequena” quando entrou um carro na vila a acelerar, passou resvés pelo irmão e estatelou-se contra um muro. Pessoas que assistiram, conta, foram ter com os dois ou três homens que estavam no automóvel e, “depois de os tirarem do carro e ver que não estavam feridos, deram-lhes um valente murro.” Hoje, continua, “todos os dias passam uns animais, que fora do carro até podem ser pessoas humanas, a 50 e 70 km/hora” e “ninguém ousa dar um murro, que seja um grito, neste delírio individualista em que estamos sufocados”.
Passemos por cima do que parece ser uma defesa da justiça popular e vamos diretamente aos factos. Em 1983, quando Raquel tinha 5 anos (“muito pequena”), morreram 2 177 pessoas na estrada, de acordo com a Pordata (a partir de dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e do Ministério da Administração Interna). Em 2018, morreram 508 – mais de quatro vezes menos.
Isto, obviamente, não significa que Portugal não deva fazer tudo o que está ao seu alcance para reduzir ainda mais as mortes (por todas as razões e mais algumas, o futuro tem de passar por tirar cada vez mais espaço aos automóveis e devolvê-lo aos peões e ciclistas). Mas os números provam que esse caminho tem sido feito.
Como investigadora, Raquel Varela tinha obrigação de partir dos factos para montar a sua tese, mas faz o contrário: adapta a realidade à sua própria perceção, tal como André Ventura quando tenta ganhar votos com um aumento da criminalidade que é desmentido pelas estatísticas. O populismo não tem cor política.