A 16 de junho, por Despacho do Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, foi criada a possibilidade de as sete instituições universitárias que têm cursos de medicina, poderem ampliar em 15% as suas capacidades formativas (mais cerca de 200 vagas). A resposta do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas foi rápida e categórica: nem pensar!
E as razões invocadas, para além da contundência dos comentários (“discórdia e estupefação”, “ profundo desagrado”, “errado e contraproducente”), são gerais, mal explicadas e pior entendidas pelo comum dos mortais. Os argumentos de capacidade esgotada, como que por encanto todas as Escolas a tivessem… (mas que se fosse para formar alunos estrangeiros ainda se arranjava…) ou de que atualmente já há licenciados sem vaga para formação na especialidade (que pretendem, provavelmente), e de que os médicos são afinal suficientes, o problema é que estão mal distribuídos, são pouco consistentes e nalguns casos contrariam a realidade. A ideia de que a falta de médicos é fruto apenas do “imaginário popular”, não se confirma no dia a dia de milhares de doentes que esperam consultas, cirurgias, exames e até a própria existência de um médico no seu habitat geográfico.
Mas vamos tentar analisar os números para, de forma rigorosa, percebermos a realidade.
Portugal tem, teoricamente, 4,97 médicos (ativos?) por mil habitantes (Pordata, 2018), o que o coloca no terceiro lugar do ranking da EU. Esta contagem é fruto dos registos da própria OM, que sobre a matéria não sabe precisar se esses inscritos estão ou não ativos, se estão todos vivos ou se alguns já faleceram. As instâncias internacionais dão um desconto de 30% a esses números da OM…o que faz logo descer aquele ratio para 3,48 por mil habitantes, ligeiramente aquém da média da EU (3,7). Esta densidade de médicos é confortável, bem superior à verificada em países europeus bem mais ricos do que nós, poderia ser suficiente se estivessem bem distribuídos pelo território nacional, quer em volume (mais de 61% dos médicos trabalham nos distritos de Lisboa, Porto e Coimbra) quer por especialidades (tem sido muito difícil contrariar a lógica de abrir mais vagas nas especialidades aonde já temos mais médicos) e, também, se as condições de trabalho permitissem a sua dedicação plena aos serviços que são classificados como o seu emprego principal. O facto da maioria dos médicos estarem em acumulação de funções entre o público e o privado, é desde logo sinal de que há dispersão de tarefas e, não, como seria desejável, a concentração de esforços e dedicação ao serviço público. A produtividade é, assim, muito baixa. Para se ter uma ideia do que refiro, as salas de operações dos hospitais públicos ficaram por utilizar em 50% da sua capacidade durante o ano de 2019 (ACSS). A COVID não existia… e os doentes, infelizmente, já nessa altura estavam à espera…Outro exemplo de baixa produtividade é o que se passa com a Medicina Geral e Familiar: o SNS tem nos seus quadros mais de 5700 médicos de família, o que teoricamente corresponde a 1800 utentes por médico. Este ratio seria excelente em qualquer contexto nacional, mas cá temos ainda mais de 650 mil pessoas sem médico da família.
O SNS é o maior empregador, como seria natural, com cerca de 19 mil médicos (excluindo internos), num ratio de cerca de 1,8 médicos por mil habitantes. O Estado tem criado condições para o aumento da empregabilidade no SNS, quer pela abertura anual de vagas para a formação geral (antes ano comum), quer para a abertura de vagas para a formação especializada. Nos últimos 10 anos o número de vagas para a formação geral (recém-licenciados) aumentou cerca de 82% e para as especialidades esse aumento foi de cerca de 48%. Mas o mais curioso, e que deve merecer uma profunda reflexão por parte de todos os interessados, é que ficaram sempre, em cada ano, vagas por preencher. No caso das vagas para especialista, e considerando os últimos 4 anos, ficaram por preencher entre 35 a 40% das vagas disponibilizadas em cada ano. Em 2019, todas as especialidades ficaram com vagas por preencher, exceto a genética médica, a cirurgia pediátrica, a cirurgia cardíaca e a cardiologia pediátrica, porque também tinham muito poucas vagas. Este panorama não mudará se não forem introduzidas regras mais impositivas que coloquem mesmo o interesse público à frente dos interesses particulares. Rejeitar um lugar de colocação no interior do país para depois, tranquilamente, obter um contrato num hospital central ou prestar serviços a uma empresa de trabalho temporário auferindo provavelmente mais, é uma perversão que devemos combater. Mas isso é também revelador da saturação do mercado e da multiplicidade de soluções que cada médico pode encontrar para continuar a trabalhar. Não há em Portugal desemprego médico, como há nos advogados, nos engenheiros, nos arquitetos, nos economistas, nos professores, nos farmacêuticos, nos enfermeiros, nos psicólogos, nos assistentes sociais, nos técnicos de diagnóstico e terapêutica e, em geral, em todas as profissões. Pelo contrário, e só no SNS, o volume de horas de trabalho suplementar pagas a médicos, em 2018, foi de perto de 6 milhões, especialmente em medicina interna, cirurgia geral, medicina geral e familiar e anestesiologia. Por outro lado, o Estado gasta com empresas de trabalho médico temporário mais de 100 milhões de euros por ano, o que prova a desconformidade do mercado de trabalho: vagas por preencher e médicos disponíveis nas tais empresas.
Se todas as faculdades avocassem para si o direito de definir as regras do mercado de trabalho e considerar a formação académica unicamente para efeitos de exercício profissional, e numa lógica de pleno emprego, deixaria de haver competitividade, emulação positiva e capacidade dos empregadores selecionarem os melhores. A ideia de uma sociedade planificada, em que cada fileira formativa apenas se cingisse a aceitar os que a seguir o Estado necessitasse (o que faria o setor privado?), limitaria escolhas e colocava os empregadores nas mãos dos profissionais. Seria um tipo de monopsónio paralisante para o desenvolvimento económico e social e faria estiolar a dinâmica da inovação e da qualidade e, ao fim e a cabo, a resposta adequada à procura de bens e serviços.
A posição tão frontal das faculdades de medicina e da Ordem dos Médicos, que se apressou na solidariedade, parece radicar-se muito nesta filosofia: fechar o acesso a mais médicos, permitirá manter a nossa força, a nossa capacidade reivindicativa e o “statuo quo” na acumulação de funções. Formar mais para “escravizar” e “explorar” os médicos, não, muito obrigado, como dizia um diretor de uma das Escolas Médicas. Ainda se fossem estrangeiros que saíssem depois de cá… Estes argumentos não têm grande racionalidade, porque hoje, no espaço europeu, qualquer médico poderá concorrer a um lugar posto a concurso em qualquer país, desde que reúna as condições exigíveis. Trabalham no SNS mais de 1800 médicos estrangeiros (de Espanha, Brasil e Angola, designadamente) e há médicos portugueses a trabalhar em vários países europeus. Do mesmo modo que há estudantes portugueses a frequentarem cursos de medicina em vários países e que legitimamente almejam poder trabalhar no seu país e vice-versa. A visão de portas fechadas para proteger ascendente e rendimentos é de todo inaceitável, atávica, exclusivamente corporativa, contra a Academia e contra o interesse público. As Escolas Médicas portuguesas formam excelentes profissionais e estes não precisam de malabarismos serôdios para impor a sua competência e o seu prestígio.