O último Conselho Europeu, realizado na sexta-feira, deu alento às esperanças que emergiam desde que a Comissão Europeia lançou a proposta de criar um Instrumento Europeu de Recuperação, parcialmente utilizado em subvenções, e não totalmente em empréstimos, como resposta financeira à crise económica decorrente da Pandemia. Além do económico, a proposta contém nas entrelinhas um objetivo político de reforço da integração. O financiamento é contraído por emissão de dívida pela Comissão, em nome da UE, tendo como garantia de pagamento o orçamento europeu. Para tal, prevê-se a criação de novas receitas próprias para o orçamento, como um imposto digital sobre as grandes tecnológicas, sobre emissões de carbono e empresas de dimensão europeia que retiram largo benefício das liberdades de circulação – tributa-se e regula-se mercado. Por outro lado, com garantia de pagamento até 2058, reforça-se o nível de interdependência dos Estados-membros. Contra as vociferações no dealbar desta crise, a UE não estará para acabar.
A proposta tem também um mérito negocial, ao deslocar o debate de estruturas intergovernamentais (o Conselho), e informais (Eurogrupo), para o âmbito comunitário. Em boa hora, a presidente Ursula von der Leyen tomou as rédeas da iniciativa legislativa que a Comissão possui por direito legal, como garante institucional do interesse comum da UE. Desta forma, diminuiu assim as probabilidades de o debate ficar minado à partida pelo estreitamento nacionalista. De tal modo que, um efeito positivo já teve. A nível mediático, dissipou-se o ruído em torno dos já condenados à nascença coronabonds, que perigavam em derivar para um esquema de empréstimos facilitados ao abrigo de um acordo intergovernamental, desvirtuando o que se pretendia ser um instrumento supranacional de redistribuição de riqueza. O antigo comissário Jacques Delors havia já alertado, nos inícios da crise financeira 2008-2009, para o perigo de as respostas da UE recaírem na iniciativa de órgãos intergovernamentais, marginalizando a Comissão e daí resultando maior possibilidade de as soluções penderem para o interesse dos economicamente mais fortes. Ora, o tipo de respostas da Zona Euro a essa crise demonstrou-o bem.
Mas, se esta dimensão institucional é importante, ela não é determinante. Von der Leyen pode muito bem ter o seu momento Jacques Delors, mas a decisão está dependente do consenso no Conselho. E é aqui que o acaso da história pode conjugar as “forças do universo” para que a UE recupere a sua alma fundacional. Em primeiro lugar, temos uma Alemanha a recuperar uma liderança positiva na Europa, em aparente redenção do egoísmo irracional austero da crise de 2008. Sem pretensões de se recandidatar, a Chanceler Angela Merkel, em fim de mandato no governo alemão e a braços com o crescimento da extrema-direita no seu país, tem avivado a memória histórica dos alemães e europeus sobre os perigos das crises económicas com graves repercussões sociais culminarem em extremismos políticos. Além da trágica memória da história europeia pré-UE, a Europa vive atualmente nessa iminência com os resultados eleitorais das respostas austeritárias à crise financeira de 2008, que esta crise pode potenciar. Este contexto facilita o exercício de coragem política à Chanceler para assumir perante o seu eleitorado que o modelo de desenvolvimento económico alemão tem beneficiado altamente de uma moeda única feita à sua medida, assim como dependerá de um desenvolvimento equitativo em toda a UE.
Em segundo lugar, temos uma França alinhada com essa solução, fortemente debilitada com a Pandemia, com uma situação interna altamente dependente das respostas económicas da UE. Isto culmina na existência de um presidente comprometido com o aprofundamento económico, financeiro e político da União, estratégia integrante da sua própria reeleição.
Daqui resulta, em terceiro lugar, a reativação do eixo franco-alemão, não na sua versão subvertida pela estreiteza nacional, ao género dupla Merkel-Sarkozy, mas como alavanca da integração europeia. E, em quarto lugar, temos a presidência da Comissão assumida por um nacional deste eixo, a fazer lembrar o contexto do fim da Guerra Fria, quando Jacques Delors articulava com a dupla de chefes de estado François Mitterrand- Helmut Kohl.
A conjugação de uma grave crise europeia com circunstâncias políticas nacionais particulares é propícia à manifestação de lideranças com a visão política que pode fazer a diferença no rumo da Europa. Este pode bem ser o momento de Merkel se juntar à lista de grandes nomes políticos da integração europeia, como Konrad Adenauer, Robert Schuman, Jean Monnet, Jacques Delors, François Mitterrand, Helmut Kohl, só para citar os mais conhecidos. A Chanceler não tem nada a perder, pelo contrário. E o calendário joga a seu favor. A próxima presidência do Conselho Europeu será exercida pela Alemanha, que terá o papel central na condução das negociações. A “cereja no topo do bolo” seria que, juntamente com van der Leyen, duas mulheres dariam diversidade de género à lista de destacadas figuras políticas da integração europeia. Esse é também um sinal de avanço da UE.