Do “I have a dream” de Luther King ao “I can’t breathe” de George Floyd (e de Eric Garner, seis anos antes dele), há um caminho de desencantamento e de dor dos afrodescendentes dos Estados Unidos da América. O “I have a dream” de Luther King foi o grito pela emancipação que o movimento pelos direitos cívicos tinha conseguido tornar massificado. O “I can’t breathe” de George Floyd exprime um sufoco coletivo, tanto como o joelho de Derek Chauvin é uma metáfora grotesca de uma cultura de esmagamento que nunca desapareceu, muito pelo contrário.
O racismo era e é o ponto nodal da história dos Estados Unidos da América, uma história feita, primeiro, de esclavagismo e, depois, de estigmatização e de segregação que se prolongaram e se institucionalizaram até aos nossos dias. A eleição de Obama, em 2008, foi um tremendo trauma para essa história de dois séculos e meio e para as forças que nela foram dominantes. Como escreveu Jeet Heer no The Nation, “a vitória de Obama virou do avesso a hierarquia racial implícita do país e a sua equivalência automática entre identidade norte-americana e branquidade”. E conclui: “O pânico causado pela presidência Obama alimentou a vitória eleitoral de Trump. O racismo tem sido o alfa e o ómega de Trump.”
Donald Trump fez do muro na fronteira com o México, da proibição de admissão de imigrantes muçulmanos e da farronca contra o “vírus chinês” um código de comunicação com uma América profunda, em que se condensam narrativas identitárias que arrepiam o uso da razão. Primeira, a narrativa do excecionalismo norte-americano, do povo eleito para guiar o mundo. Segunda, a narrativa da violência purificadora, segundo a qual a História é um conflito entre o Bem e o Mal e que só a destruição do Mal trará a salvação – narrativa que alimenta a glória de vários personagens de banda desenhada, mas que, sobretudo, alimenta a liberalização da posse de armas de fogo ou a pena de morte. Terceira, a narrativa da nostalgia da confederação, dos good old times de um sistema com dois níveis incomunicáveis: os de cima e os de baixo, com as mulheres (vejam “Mrs. America”…), os índios, os afro-americanos, os hispânicos e tantos outros a serem excluídos do contrato social.
É para a América destas três narrativas identitárias que Trump fala. E ela escuta-o como o seu anjo. Ele encarna um bloco social que assume por inteiro uma luta redentora contra “os inferiores”. É assim, com exuberância tantas vezes folclórica, na promessa de um muro – igual a todos os outros muros que separam os superiores dos inferiores… –, mas é assim também na agressividade contra tudo o que soe a universalização dos cuidados de saúde ou da educação pré-escolar, contra a regulamentação da posse de armas, contra as medidas de discriminação positiva no acesso ao Ensino Superior ou contra qualquer cenário de salário mínimo.
O joelho de Derek Chauvin e o grito de George Floyd condensam tudo isto. E tudo isto é potenciado dramaticamente em tempo de inépcia criminosa da administração Trump na resposta à pandemia da Covid-19 e de depressão económica e social sem precedentes. E agora, diante da explosão de manifestações de revolta, o magnata responde voltando a Nixon: law and order. Ele, o desordeiro por excelência, a falar para a América profunda.
É a gente sufocada pelo bloco social que Trump lidera que exige mudança. É a falta de segurança das pessoas comuns – atiradas para a sorte ou o azar, no quadro da pandemia, por um sistema de saúde só para uma minoria e atiradas para o vazio de resposta social face a um desemprego tsunâmico – que mostra que vencer Trump em novembro é fundamental, mas que isso é pouco. Porque o que está diante dos nossos olhos é que, lá como cá, o combate ao racismo faz-se de leis, de cultura e de educação. Mas faz-se, mais do que tudo, de um Estado social forte, que inclua toda a gente no espaço da dignidade. Cá como lá, é na habitação, no emprego, nos transportes, na Justiça, no hospital e na escola que o joelho de Derek Chauvin será removido a sério.