Progressiva e abençoadamente, esta realidade a que se convencionou chamar desconfinamento está a permitir-nos encontros com aquelas pessoas das quais gostamos. Por outro lado, uma vez que ainda não somos todos obrigados a sair de casa, como dantes acontecia para irmos trabalhar, e tirando de forma breve o vizinho do andar de cima quando vamos deitar o lixo e a nossa sogra através de videochamada, ainda não começámos a ter de conviver com as pessoas das quais não gostamos. O postulado composto por estes dois enunciados poderia levar-nos a uma dedução lógica de grande simplicidade, pois muito naturalmente afirmaríamos que, se nos temos encontrado com aqueles que nos são queridos e estado a léguas de quem não nos faz falta, é perfeita a situação em que nos encontramos. Sucede que tal inferência é tão falsa quanto é válida a tese que brevemente passarei a explicar a partir de uma amostra representativa o bastante.
Através de uma breve análise de conteúdo do único caso que conheço, e que conta já com alguns encontros realizados, apercebi-me de que, agora que já podemos sair à rua e encontrar pessoas, o que mais falta nos vai fazer é aquilo que os nossos braços já choram desde que nos fechámos em casa: a falta de abraços. Encerro aqui a secção teórica deste texto e passo ao domínio empírico, não sem antes salvaguardar que não tenho vizinho de cima e que gosto muito da minha sogra.
No fim de semana pretérito, já irritado por não poder estender a mão às pessoas, fui propositadamente a um supermercado em que, à entrada, desinfetam as mãos aos clientes e os obrigam a calçar luvas e, por entre curgetes e mangas de avião, convidei sete pessoas a cumprimentarem-me da forma proibida. Algumas olharam para mim como se eu fosse maluco – e concedo que pudessem não estar erradas –, mas quatro, incluindo dois trabalhadores do supermercado, aceitaram dar-me, cada um deles à sua maneira, um plastificado e glorioso passou-bem. Por detrás das máscaras, naquele cantinho dos olhos onde agora moram os sorrisos, todos eles demonstraram ter gostado da experiência – o que é o mesmo que dizer que ela se revelou cem por cento gratificante para a parte da amostra que não foi parva. Isto foi no sábado, a seguir ao almoço. À noite, já depois de ter estado com familiares e amigos, entrei em casa dando conta de que tinha os braços cheios de saudades de abraçar. Vieram-me então à memória os seguintes versos nada batidos: «São dois braços, são dois braços/Servem p’ra dar um abraço/Assim como quatro braços/Servem p’ra dar dois abraços.» Com estes versos e algum vinho – afagos amigos para a falta dos abraços – nos deitámos, enfim, eu e os meus braços.
Na manhã seguinte, o vinho já menos amigo e doendo ao invés de afagar, pus a tocar um dos melhores discos de todos os tempos: “Sérgio Godinho Canta Com Os Amigos do Gaspar”. A já citada faixa nove, a “Canção dos Abraços”, tocou repetidamente até eu ter medo de que o vizinho me viesse avisar de que por certo haveria um problema com a minha aparelhagem. Mas o bem já estava feito, porque não há como não ficar animado ao ouvir aquelas canções e ao relembrar essa genial criação artística para televisão saída das cabeças de João Paulo Seara Cardoso – uma vénia – e de Jorge Constante Pereira – outra vénia. Quão grato lhes estou – e sei que não estou nada só nisto (por alguma razão é o conteúdo mais vezes emitido pela RTP Memória) – por me terem dado, há trinta e dois anos, “Os Amigos do Gaspar”. Guardo-os até hoje. Querem ver?
Nesse mesmo dia, no recomeço do campeonato alemão de futebol, vi a triste imagem dos jogadores a quebrarem a normalidade da alegria festejando com os cotovelos, em momentos deprimentes e insatisfatórios, como são todos os prazeres interrompidos. Tive pena dos jogadores, cujos braços devem ter sentido falta dos abraços próprios dos festejos. Felizmente, mais uma vez, do fundo das minhas memórias, acorreram em meu socorro “Os Amigos do Gaspar”, com uma canção intitulada “Viva o Futebol”, que, se o Sérgio Godinho não se importar, transcrevo quase na íntegra, dado que termina com os mais icónicos e maravilhosos versos por ele escritos para essa série: «Braços abaixo, braços acima/Um, dois, três, quatro/Braços abaixo, braços acima/Um, dois, três, quatro/Um, dois, três e quatro/Quem é candidato/A ser hoje o campeão?/Um, dois, três e quatro/É pro campeonato/Controlem-me bem essa respiração/Ouve-se o relato, é golo, é golo/Sempre com a bolinha rente ao solo, é golo/A vitória está na mão/Um, dois, três e quatro/Quem é candidato/A ser hoje o campeão?/Um, dois, três e quatro/É pro campeonato/Controlem-me bem essa respiração/Ouve-se o relato, é golo, é golo/Sempre com a bolinha rente ao solo, é golo/A vitória está na mão/É tão bom uma amizade assim/Ai, faz tão bem saber com quem contar/Eu quero ir ver quem me quer assim/É bom pra mim, é bom pra quem tão bem me quer.»
Está bom de ver que, enquanto isto durar, sair para a rua com um frasquinho de álcool gel no bolso tem também a serventia de me permitir propor saudosos apertos de mão a quem tão bem me quer. Só ainda não encontrei idêntica solução para os abraços, mas poder ouvir, em qualquer altura, via streaming, a canção do Sérgio Godinho para “Os Amigos do Gaspar”, a tal que é sobre os abraços, ajudará bastante, quando os meus braços sentirem deles falta. Não faltam por aí remédios piores.