No meio deste imenso vazio monotemático em que vivemos desde março, a morte de D. Manuel Vieira Pinto, ocorrida no passado dia 30, passou quase despercebida. Esta nossa acabrunhante distração coletiva, quase sem exceções, foi uma oportunidade perdida para repor na História – na História do País e na História da Igreja Católica em Portugal – quem a marcou com os traços da coragem e do sentido superior da humanidade. Porque Manuel Vieira Pinto foi isso e não o podemos esquecer.
A chave do sentido dessa presença de D. Manuel Vieira Pinto na nossa História está sintetizada na resposta que deu a Samora Machel quando o Presidente de Moçambique lhe perguntou porque é que ele, que era bispo, nunca lhe falava de Deus, mas sim do povo e da defesa dos seus direitos e da sua dignidade: “Porque um deus que precisasse da minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus não precisa que O defendam. O homem sim.” 1
O testemunho de uma vida inteira do padre, depois bispo e, enfim, arcebispo de Nampula fez-se de uma ação coerente com este entendimento da tarefa dos cristãos no mundo: jogar ao ataque na defesa dos direitos de todos e não mascarar como defesa de Deus o que não é senão a defesa do statu quo. D. Manuel Vieira Pinto agiu assim no terreno em que essa coerência de cristão se afigurava mais exigente e difícil: o sistema colonial. O colonialismo, como sistema de tripla hierarquia – hierarquia social, hierarquia racial e hierarquia entre metrópole e colónia –, confrontou a Igreja com um funcionamento social feito de humilhação naturalizada dos povos colonizados. A guerra foi o paroxismo desse sistema. E D. Manuel Vieira Pinto não contestou apenas a guerra – o que fez com coragem lúcida, por exemplo, na carta que enviou a Paulo VI, em agosto de 1973, em que denunciou os massacres de Wiriyamu. Foi mais fundo: contestou o colonialismo, em si mesmo, como sistema iníquo. Contestou-o em gestos – logo a começar, como sublinhou Anselmo Borges, pelo beijo ao bebé negro quando chegou a Nampula, em 1967 – e em palavras, como as da homilia de 1 de janeiro de 1974, em que proclamou: “A paz não é compatível com a ordem à custa da verdade, da justiça, do amor e da liberdade; não é repressão, não é medo, não é silêncio, não é morte. (…) O homem é o coração da paz. (…) E não apenas o homem sem nome, distante, desconhecido, mas o homem daqui e de hoje, o homem que, em Moçambique, sofre, há quase dez anos, a violência da guerra (…). Por isso, falar da paz em Moçambique sem falar lealmente da guerra que o mancha de sangue seria iludir o problema fundamental, seria aumentar a violência.” Estas palavras desassombradas levaram à sua expulsão, primeiro de Nampula e depois de Moçambique, por ordem das autoridades fascistas, nas vésperas do 25 de Abril. Punido por jogar ao ataque em defesa das pessoas concretas contra as políticas que as oprimiam. Punido por não defender Deus com ladainhas cegas à violência dos poderes.
Esse sentido da centralidade das pessoas concretas, acima de quaisquer abstrações, prolongou-se na sua ação pastoral, no Moçambique independente. E, com o mesmo desassombramento do passado, D. Manuel Vieira Pinto bateu-se contra as injustiças e humilhações dos campos de reeducação, dos desmandos do regime de partido único ou das violências dos rebeldes. Sempre em nome dos homens e mulheres diminuídos na sua dignidade e privados dos seus direitos.
O testemunho de D. Manuel Vieira Pinto é importante demais para se perder neste tempo distraído com variações percentuais do achatamento da curva ou com desempenhos de entrevistadores televisivos. Testemunho de que é na defesa da dignidade de cada pessoa que se joga o sentido da ação de crentes e de não crentes. Testemunho de que a política é o espaço irrenunciável para essa convergência e para a tensão que a enriquece. Testemunho de que a defesa dos mais vulneráveis exige coragem serena, porque nenhum poder é maior que a dignidade de cada um e de todos.
1 “D. Manuel Vieira Pinto. Cristianismo: política e mística”, com introdução e notas de Anselmo Borges. Edições ASA, 1992
(Opinião publicada na VISÃO 1418 de 7 de maio)