As crises sempre foram momentos de ameaça (e de oportunidade) para os sistemas políticos. Esta não será diferente. Mas os perigos não espreitam necessariamente de onde mais se espera. É seguramente chocante assistir à impassividade da Europa perante mais uma escalada na consolidação do poder sem freios nem contrapesos de Viktor Orbán. Ou à resignação com que a comunidade internacional olha para as ameaças de morte de Rodrigo Duterte contra a população filipina. Mas convenhamos que a Hungria e as Filipinas não eram exatamente modelos de democracias liberais pujantes. Nem Orbán, nem Duterte precisaram da desculpa de uma pandemia para sufocar a democracia.
No atual contexto, preocupam-me mais, confesso, as mudanças nas democracias liberais mais funcionais. E preocupam-me por duas razões. A primeira é porque tenho bem consciência de que vamos ter muito sofrimento pela frente. Às mortes e ao desemprego que todos queremos evitar somar-se-ão os efeitos de um confinamento muito prolongado e de uma recessão que pode ser bem mais longa e profunda do que antecipámos. E sei bem que esse é o pasto preferido dos oportunistas políticos. Que não haja, a esse respeito, qualquer ilusão. Em todas as sociedades, incluindo a portuguesa, há quem só esteja à espera do cansaço, do desespero, dos erros que inevitavelmente serão cometidos para fomentar dissensões e ressentimentos em benefício das suas particularíssimas agendas políticas. Vai acontecer. À esquerda e à direita. Por puro oportunismo.
Mas preocupa-me porventura mais ainda que venhamos a achar aceitáveis, num contexto de normalidade, algumas das mudanças que, um pouco por todo o mundo, estão a ser implementadas no quadro de estados de exceção. Repugna-me em particular que possam perdurar as medidas limitadoras da privacidade que estão a ser usadas como estratégias (eficazes) para combater a pandemia.
O que se passa na China é, deste ponto de vista, paradigmático. A monitorização de telemóveis, câmaras de vigilância, dados biométricos para controlar e condicionar comportamentos individuais não é uma novidade absoluta, muito menos é um grande acontecimento tecnológico. A novidade está na escala, mas está sobretudo na conformação, aceitação e adesão entusiástica dos vigiados. E na indisfarçável admiração com que, também do Ocidente liberal, observamos a inquestionável eficácia deste totalitarismo tecnológico.
Que não haja equívocos. Reconheço o sucesso da estratégia no combate à pandemia. E não contesto o uso de medidas excecionais em tempos excecionais. O que me assusta é que, movidos por um medo legítimo, mas que raramente é bom conselheiro, sejamos nós próprios a reclamar mais e mais invasões à nossa privacidade, bem além do tempo estritamente necessário. Do que verdadeiramente tenho medo (parafraseando Roosevelt) é do nosso medo. Porque o medo perdurará, mas as democracias liberais continuarão a ser profundamente incompatíveis com estados vigilantes e omnipresentes.
A chave, como tanta coisa na vida política, está no vigor do nosso sentido cívico. Agora é o momento de colaborar com medidas de exceção que, no essencial, não ofendem o bom senso. Tanto mais que, no caso português, dificilmente se pode dizer que foi grosseiramente invadida a nossa privacidade. Mas vai obviamente chegar o momento de exigir que recuperemos as nossas liberdades. E de recusar a importação de exemplos que não podem ser aceitáveis no contexto do regresso à normalidade.
(Opinião publicada na VISÃO 1414 de 9 de abril)