A pandemia do COVID-19 continua o seu caminho perturbador, com severidade desigual à volta do planeta e sem fim à vista. Portugal passa já por ser um bom exemplo ao nível europeu, tais os contrastes favoráveis dos seus resultados face à maioria dos países e, sobretudo, face à vizinha Espanha.
Passamos rapidamente a barreira dos 100 casos por milhão de habitantes e, em apenas 33 dias, atingimos mais de mil casos por milhão de habitantes. Não houve nenhum país, do painel que estamos a utilizar (Espanha, Itália, Alemanha, França, Reino Unido, Suécia, Coreia do Sul e EUA) que tenha demorado menos de 53 dias a atingir a fasquia dos mil casos. Esta evolução poderia indiciar dificuldades sérias de resposta por parte dos serviços de saúde portugueses, mas isso não aconteceu. Vejamos as razões principais:
- Os níveis de gravidade dos infetados
Ao contrário dos padrões de gravidade previstos pelos especialistas (80% dos doentes em ambulatório, 15% internados e 5% em situação crítica), a realidade portuguesa sempre retratou uma distribuição diferente e mais favorável (mais de 90% em ambulatório, menos de 10% internados e menos de 2% em cuidados intensivos). Este cenário particularmente favorável, e que contrasta com valores a rondar os 8 a 10% de doentes críticos em Espanha, Suécia ou França, permitiu que os serviços hospitalares fossem respondendo sem grandes problemas à procura gerada pela Covid-19. O facto de termos uma população infetada, maioritariamente pertencente aos grupos etários mais jovens, com as classes entre os 30 e os 60 anos a representarem mais de 53% dos casos, tem também contribuído para este perfil clínico globalmente favorável.
- O impacto na mortalidade
Os óbitos são sempre a questão mais dramática que resulta da análise destas epidemias. Pelas razões sinteticamente tratadas no ponto anterior, Portugal apresenta uma das mais baixas taxas de letalidade no conjunto dos países que estamos a acompanhar. Vai subindo lentamente, sobretudo junto dos mais idosos, como em todos os países, à medida que o vírus se dissemina, mas mantém-se em valores ainda inferiores a 3%, que contrastam com os cerca de 13% em Itália, 12% no Reino Unido ou 10% em Espanha e França. Em termos absolutos, isso significa um contingente de óbitos 46 vezes superior em Itália, 38 vezes superior em Espanha, 27 vezes superior em França e 19 vezes superior no Reino Unido, o que nos dá bem a magnitude da tragédia humana provocada por este vírus, naqueles países, e a diferença que nos separa.
- A velocidade com que se atinge o pico
Tudo estaria a ser feito para se atrasar a evolução da incidência do vírus, tendo em conta que isso permitiria utilizar os recursos disponíveis de forma mais organizada e gradual, evitando-se a afluência descontrolada de novos casos. Como que por milagre, nem essa lenta evolução no número de infetados se verificou, nem o pico pareceu deslocar-se muito para a direita do calendário. Em 30 dias atingimos o que parecia ser um pico (31 de março), logo seguido de outro no dia 10 de abril, com o número de novos casos a atingir o valor record de 1516 infetados. Parece configurar-se mais um planalto do que um pico. Desde que atingimos os 100 casos por milhão de habitantes (a 21 de março) os registos semanais de novos casos, apontam para os seguintes valores médios diários:
. 21 a 27 de março – 555,7 novos casos /dia;
.28 de março a 3 de abril – 764,8 novos casos/dia;
.4 a 10 de abril – 824,7 novos casos /dia.
Parecia que o aumento de novos casos teria sido sustido a partir da semana iniciada a 4 de abril, mas no dia 10 voltamos a ter um record de novos casos. Esperemos que não represente o recrudescimento do contágio. Muita cautela e nunca fiando…
Observando o que se passa com os países do painel de comparação, verificamos que a Itália parece ter infletido a progressão do contágio só 52 dias depois do início do surto, a Espanha 64 dias, a Alemanha 61 dias, a Coreia do Sul 49 dias e a Suécia 64 dias. A França, o Reino Unido e os EUA ainda não parecem ter conseguido suster o surto e já levam entre 70 e 80 dias desde o primeiro caso registado. Ou seja, Portugal foi mais rápido na expansão do contágio, mas, tudo indica, mais rápido também na capacidade de inverter a progressão.
Para tudo isto não será alheio, quer a decisão inicial do governo do dia 12 de março, quer a declaração do estado de emergência, na 5ª feira seguinte, dia 19. E se considerarmos o período de incubação do vírus até à manifestação de sintomas, parece razoável admitir-se que entre 12 a 16 dias depois das medidas drásticas de confinamento, o seu impacto no crescimento do número de infetados começou a resultar (primeiros dias de abril).
- Uma oferta do SNS sem roturas
Este é o corolário lógico do que temos dito. Um perfil clínico de menor gravidade faz com que a esmagadora maioria dos casos seja tratada no domicílio e que os novos casos a carecer de internamento hospitalar, possam ser recebidos e tratados sem grande pressão. Na pior semana (28 de março a 3 de abril) a média diária de internamentos foi de 93,8 novos casos, mas na semana seguinte (de 4 a 10 de abril) essa média reduziu-se a, apenas, 17,5 internamentos diários. A mesma tendência ocorreu na necessidade de internamento em UCI. A média diária de novos doentes internados foi de 23,1 entre 28 de março e 3 de abril, mas teve um crescimento negativo entre 4 e 10 de abril, de menos 4,16 doentes por dia. Ou seja, temos agora menos doentes a necessitar de cuidados intensivos. É claro que este é um processo dinâmico, mas importa constatar a realidade – não há pressão no uso de camas nos hospitais e nos cuidados intensivos. O pico do dia 10 parece não ter representado mais trabalho para os hospitais (mais 6 doentes internados e menos 15 em cuidados intensivos).
Isto contrasta com o que se passa, por exemplo, na nossa vizinha Espanha. No relatório do “Centro de Coordinación de Alertas y Emergências Sanitárias” de 9 de abril, verificávamos que mais de 30% dos doentes infetados necessitaram de internamento hospitalar e cerca de 9% passaram por cuidados intensivos. Na Catalunha, estavam internados, por COVID- 19, cerca de 21 mil doentes e, na Comunidade Autónoma de Madrid, cerca de 13 mil. Isto dá-nos bem a noção da rotura da oferta que, naturalmente, tem que ocorrer nestas circunstâncias. Nesse mesmo dia, nós tínhamos internados em todo o país, com COVID-19, 1173 doentes.
Importa acrescentar que, entretanto, a oferta hospitalar se reduziu, drasticamente, na grande maioria das especialidades, com exceção da medicina interna, infecciologia e pneumologia: consultas canceladas, cirurgias adiadas, hospitais de dia encerrados. Apenas os doentes oncológicos e outros casos inadiáveis são objeto de intervenção. Os serviços de urgência viram reduzida a afluência de doentes de forma abrupta. Entre a afluência registada no dia 27 de dezembro de 2019 e a registada no dia 7 de abril de 2020 verifica-se uma quebra de 62% na procura de urgência hospitalar, e entre os dias 10 e 16 de março essa redução foi de 40%.
Isso permite aos hospitais reconverterem recursos humanos dedicados às urgências para tarefas mais adequadas aos fluxos de Covid-19, substituindo profissionais em áreas mais diretamente envolvidas com esta pandemia. Mas também será tempo de se pensar no curto e médio prazo, por forma a evitar deixar para trás muitos doentes crónicos ou que esperam intervenção cirúrgica. Os problemas de acesso que irão colocar-se, se não se trabalhar desde já na elaboração de alternativas para se responder ao doente programado, poderão desembocar em descompensações graves e num aumento da mortalidade, de todo inaceitáveis.
Diga-se, a propósito, que morrem em Portugal, por ano, cerca de 114 mil pessoas (INE, 2020).Por pneumonia, e de certeza sem Covid- 19, são cerca de 6 mil pessoas. Em termos mensais, isto representa, aproximadamente, 9.500 óbitos (geral) e 500 óbitos (pneumonia). No mês de março, e com mais os primeiros 10 dias de abril, morreram com este vírus 435 pessoas. Temos que continuar a manter toda a atenção à saúde dos portugueses e esperemos que esta crise pandémica não nos concentre em excesso. Até porque as coisas nos estão a correr relativamente bem.
Catarina Sena:
Subdiretora- Geral da Saúde. Conheci-a há cerca de 25 anos, quando entrou como aluna na Escola Nacional de Saúde Pública. Fui depois seu colega como professor e trabalhamos juntos na excelente equipa de administração do então Sub-Grupo Capuchos/Desterro, dos velhinhos Hospitais Civis de Lisboa, nos finais dos anos 90 e na viragem do milénio. Integramos, nessa altura, a Direção da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. Sempre disponível, inteligente, viva, com uma capacidade de trabalho invulgar, apurado pragmatismo e um sentido de responsabilidade raro. Discreta e serena, impôs-se sempre pelas suas evidentes qualidades e não foi surpresa acompanhar a sua carreira fulgurante na Administração do SNS. Francisco George dizia-me várias vezes que a Catarina era o seu braço direito e esquerdo, tal a confiança e a segurança que ela lhe dava na gestão da DGS. Graça Freitas dedicou-lhe, um destes dias, um belíssimo depoimento em que enaltecia as suas virtudes e agradecia a sua dedicação e inteligência ao serviço da DGS. Deixou-nos, ainda jovem, no passado dia 6 de abril. A minha singela homenagem.