Sou, há 18 dias, um zeloso refém da covid-19. Nestas quase três semanas, já fiz praticamente tudo o que o cativeiro me permite, mas recuso que a clausura seja sinónimo de fechamento. Não me têm faltado a música, os filmes ou os livros. Tão-pouco as apps e as redes, os jogos e as experiências gastronómicas, o vinho e, sobretudo, a voz e a imagem dos meus. Por comparação com os estoicos que estão na linha da frente do combate ao maldito vírus ou face aos milhões que asseguram que quando esta distopia terminar continuaremos a ter estrada para andar, sou um privilegiado, bem sei.
No entanto, dia após dia, a quarentena vai-me derrotando. Recorda-me das banalidades de que não prescindiria em tempos de normalidade e sussurra-me, sempre que pode, que é melhor que me habitue a viver sem elas. Lembra-me de que é o acessório que nos torna mais do que bestas sadias. Previne-me de que a sanidade se alimenta das coisas mais importantes dentro das coisas menos importantes das nossas vidas. Como o futebol.
Neste março atípico, estreou na Netflix uma minissérie sobre os primórdios da modalidade, num Reino Unido estratificado e desigual. Seis episódios, que degluti entre sábado e domingo, que retratam a dicotomia entre as raízes aristocratas do jogo nos home counties e o sonho das classes desfavorecidas do resto da ilha.
O enredo de The English Game transporta-nos para Lancashire, condado de indústrias de algodão e têxtil, de filhos votados à mesma sorte que os pais: operários com horários criminosos e sujeitos aos apetites de patrões que ignoravam a indignidade de ter de se escolher entre uma sopa ou um medicamento. Nesse caldo cultural, rapidamente o futebol se transformou no alívio que o corpo pedia e na catarse que a mente reclamava. A ida à bola ritualizou-se como fuga ao quotidiano cruel. Sacralizou-se como o momento em que vizinhos e conterrâneos, até aí apenas ligados pelas enfermidades, pelo analfabetismo, pelas roupas sujas ou coçadas e pela ambição limitada à administração do dia seguinte, passaram a comungar alegrias e tristezas. O golo, esse, ascendeu a símbolo da luta de classes.
No final do século XIX, além das rivalidades locais – só os britânicos percebem tão bem a máxima “support your local team” -, a disputa social também se travava dentro das quatro linhas. Ao ponto de ter levado um pequeno clube de trabalhadores fabris, o Darwen, a cometer uma loucura e a recrutar dois talentosos escoceses, Fergus Suter e Jimmy Love (interpretados, respetivamente, por Kevin Guthrie e James Harkness), para as suas fileiras. Terão sido eles os primeiros futebolistas profissionais, algo que violava os regulamentos da época, redigidos e fiscalizados por uma Football Association (FA) controlada pelas elites londrinas.
A democratização da modalidade provocava urticária a alguma dessa aristocracia, especialmente à que via no acesso indiscriminado à FA Cup uma ameaça à hegemonia das equipas compostas por antigos alunos de colégios prestigiados, como o Harrow ou o Carterhouse, ou de universidades conceituadas, como Oxford ou Eton. A ideia de que white e blue collars valessem o mesmo, nem que fosse durante 90 minutos, assustava.
A resistência durou até 1883, quando o Blackburn – com Suter no 11 – chegou à final da taça e superou os Old Etonians por 2-1. Mais impressivo que o triunfo que mudou o paradigma do futebol foi, porém, um jantar ficcionado por Julian Fellowes (criador de Downton Abbey), que escreveu e produziu a série. À mesa, os jogadores dos Old Etonians apontavam o dedo ao Blackburn por terem profissionais nos seus quadros. Ousavam falar em “batota”, vejam bem, e até defendiam que os adversários deviam ter sido excluídos do derradeiro encontro.
Arthur Kinnaird (Edward Holcroft), capitão do conjunto, que viria a ser presidente da FA, assumiu-se como o figaldo atento ao desenlace da sociedade e matou com desassombro a discussão: “Nós não fizemos? Comemos um jantar de cinco pratos, incluindo lagosta e borrego assado. Quantas vezes acham que as equipas de operários fizeram o mesmo na noite anterior a um jogo ou noutra noite qualquer?”
Não fizeram. Não podiam fazer. Por esse mundo fora continuam sem poder. Nenhum miúdo pode satisfazer a fome de bola sem antes saciar a fome de pão. A muitos, demasiados, tenham nascido nas favelas do Brasil, nas bidonvilles de França, em aldeias destruídas nos Balcãs, nos sopés das montanhas da Colômbia ou em povoações dizimadas por milícias ou grupos terroristas em África, foi e continuará a ser o futebol a salvar. Não é obra do acaso. É o ingrediente secreto e a magia do maior fenómeno interclassista da contemporaneidade.
Este período de quarentena tem-me dado para rever algumas partidas que contarei em detalhe aos meus netos: o França x Brasil, de 1998, em que Zidane se elevou a melhor do mundo; o Manchester United x Bayern Munique, de 1999, no qual um gigante, Schmeichel, invadiu a área de outro, Kahn, para ajudar a sua equipa dar uma reviravolta no marcador; o Portugal x Inglaterra, de 2004, em que Ricardo abdicou das luvas e revelou ter mãos de aço; o FC Porto x Benfica, de 2010, esse mesmo, o dos 5-0, com Hulk e Falcao endemoninhados.
Nada que se compare, contudo, ao França x Portugal, do Euro 2016. Aquele “Vai, Éder! Vai, Éder! Vai, Éder! Chuta, chuta, chutou!” – como gritou o Nuno Matos ao microfone da Antena 1 – foi o maior momento de júbilo coletivo de que fiz parte. Enquanto escrevo este artigo, ainda sinto o cheiro a cerveja derramada sobre o corpo e a queimadura que me fizeram na pele quando abracei amigos e desconhecidos. Sem filtro ou critério. Todos iguais e a celebrar o mesmo feito. Naquela noite, fui adepto desmiolado, comentador exaltado e líder de claque. Em simultâneo. Em repetição incessante. E voltaria a sê-lo.
Em todo o caso, prometo não me esquecer das histórias dos heróis que aprendi a admirar nos estádios ou na TV. Os meus netos precisam de saber que se não tivesse sido o futebol provavelmente Kanté ainda recolheria lixo nos subúrbios de Paris. Faço questão de que conheçam as peripécias de Ibrahimovic ou Modric, ambos descendentes de refugiados de guerra da antiga Jugoslávia, a quem o jogo ofereceu (quase) tudo. E falar-lhes-ei do miúdo que da Madeira partiu com uma mão à frente e outra atrás e que só voltou quando teve o mundo a seus pés. Do nosso Cristiano, claro.
Se a memória não claudicar, espero contar também o gesto solidário de antigos jogadores do Benfica e do Barcelona, que juntos salvaram da miséria um antigo companheiro, Okunowo, a quem a casa, na Nigéria, ardera em 2012. Espero ter fôlego para evocar a amargura dos que viram cair inanimados no relvado Foé, Fehér ou Puerta. Assim como desejo ter presente que, no meu tempo, houve clubes e famílias, em campos de todo o planeta, a condenarem em uníssono a violência e a intolerância, o racismo, o sexismo, a homofobia e as demais discriminações e iniquidades que energúmenos teimam em perpetuar.
Se me é permitida a franqueza, foi esta a dimensão do futebol de que me lembrei nos últimos dias. Das rivalidades exacerbadas, das provocações gratuitas, dos treinadores de bancada, do nervoso miudinho na barriga em dias de jogos decisivos, do hino da Liga dos Campeões, do êxtase pós-vitória ou do desalento pós-derrota, de tudo isso, confesso, já sentia saudades. Mas foi este lado, este papel reparador que esta indústria milionária teve e tem para tanta gente, sem atender a etnia, a cor, a sexo, a credo, a ideologia ou a condição económica, que me fez escrever. Afinal, mesmo quando tudo o resto falhar, haverá melhor metáfora para o elevador social do que o céu no olhar de um puto quando dá um pontapé na bola?