A pandemia do COVID-19 vai evoluindo de forma dramática, principalmente na Europa e nos EUA, afinal no interior dos países mais ricos e social e economicamente mais desenvolvidos.
Discute-se muito o tipo de medidas mais eficazes para travar o galope do vírus, mas o certo é que nem sempre os que atuam “by the book” são os que apresentam os melhores resultados. O confinamento imposto às populações, a par da triagem sistemática a toda a população, parecem ser o tipo de medidas mais consensuais, deixando para trás a ideia da contaminação generalizada tendo como objetivo a imunização de grupo. Há, todavia, surpresas, como iremos ver.
Escolhi, para uma análise estatística mais pormenorizada, 9 países, 7 europeus e dois externos: os EUA e a Coreia do Sul. E procedi a uma análise temporal do impacto deste vírus nas respetivas populações através de um indicador muito simples: número de casos acumulados por milhão de habitantes.
Como primeiro indicador da rapidez de instalação/expansão do vírus (face ao primeiro caso registado), utilizei, como medida, a fasquia dos 100 casos por milhão de habitantes. Infelizmente, isso aconteceu mais rapidamente em Portugal do que nos restantes países considerados:
Portugal – (ao fim de) 19 dias » (incidência a 26 de março) : 344,1/milhão hab.
Itália – 38 dias » 1225
Espanha – 42 dias » 1205,9
Coreia do Sul – 43 dias » 180,8
Suécia – 45 dias » 286,8
Alemanha – 51 dias » 528,4
França – 53 » 382,5
Reino Unido -53 » 149,3
EUA – 61 dias » 231,5
Deste pequeno quadro podemos retirar algumas conclusões importantes:
1. O ritmo de contágio inicial do vírus é diferente de país para país, tendo sido bem mais rápido em Portugal. Os restantes países apresentam períodos que variam, grosso modo, entre 40 e 50 dias, com a exceção dos EUA, que aparenta ter tido alguma distração, no registo e avaliação, no início do surto.
2. A incidência do vírus também apresenta diferenças assinaláveis de país para país e que não têm a ver com o tempo de progressão da infeção. A Itália, com cera de 8 semanas de evolução, lidera o volume relativo de casos, com a Espanha (8 semanas também) já praticamente ao mesmo nível, e com a Alemanha (9 semanas de evolução) a seguir, ainda que a grande distância. Reino Unido e Coreia do Sul destacam-se pela positiva, pois apresentam os níveis de infeção mais baixos neste conjunto de países e já com um número de semanas de evolução significativo (8 e 10 semanas, respetivamente).
Entre 5 a 6 dias após atingirem aquela fasquia (100 casos por milhão de habitantes), quase todos estes países aceleraram exponencialmente no número de habitantes atingido, passando para o triplo de casos por milhão de habitantes. A única exceção, para pior, foram os EUA que levaram apenas 3 dias para triplicar aquele valor relativo.
Esta evolução seria genericamente a esperada: a replicação com base num pequeno número de infetados é sempre relativamente moderada (fase de contenção) e depois segue-se a fase de expansão comunitária e as tentativas de mitigação. Neste caso, o que é surpreendente para nós é a velocidade com que passamos a primeira fase, face aos restantes países do painel de comparação. Não tivemos, propriamente, especiais medidas a assinalar naquela primeira fase (entre 2 e 13 de março), e só com a decisão do Conselho de Mistros do dia 12 é que se iniciaram medidas de limitação de contactos (escolas fechadas, encerramento de restaurantes e similares, empresas em teletrabalho,etc.), depois fortalecidas com a declaração do estado de emergência. De salientar que estas medidas, tomadas num intervalo de 11 a 13 dias sobre o primeiro caso registado, colocam-nos na linha da frente das ações precoces de controlo em todo o mundo, e esperemos, por isso, obter bons resultados nesta fase de mitigação.
Aquela ausência inicial de medidas pode ser uma das explicações para a rápida evolução do número de casos, a par do significativo impacto dos casos importados, principalmente de Itália, Espanha e França, o que num país de forte emigração como o nosso pode vir a ser um problema adicional grave. Diga-se em abono da verdade que a Suécia, um dos países que mais tempo demorou a atingir os 100 infetados por milhão de habitantes, é dos que tem adotado medidas mais leves na limitação de circulação e convívio social dos seus cidadãos, com restaurantes, bares e lojas ainda agora abertos. Parece não haver um nexo seguro de causalidade entre as boas medidas e a contenção na progressão do vírus. Mais do que as medidas dos governos, o comportamento social e os hábitos e a cultura dos povos determinam níveis diferentes de consciencialização para este tipo de problemas, com os escandinavos muito mais disciplinados, por exemplo, do que os latinos, como bem sabemos.
O caso inglês continua a ser objeto de grande controvérsia científica. Repare-se que o Reino Unido é o país, desta amostra, que tem menos casos registados por milhão de habitantes, mesmo já com 8 semanas de evolução do vírus desde o primeiro caso assinalado. Investigadores da Universidade de Oxford dizem agora que, afinal, é bem possível que a ausência de medidas inicias de confinamento social, tenham permitido mesmo a imunização de grupo, provocada pelo contágio generalizado e sem controlo no início do surto. Este estudo admite que metade da população inglesa possa ter sido já contaminada, ainda que sem declaração de caso e com recuperação em casa. Daí o baixo ratio de infetados por milhão de habitantes.
Numa análise temporal, verificamos que nalguns dos países referidos já se atingiu o quíntuplo dos infetados, principalmente naqueles que têm mais semanas em contacto com o vírus (8 a 9 semanas). Em Itália, isso ocorreu 9 dias depois dos 100 casos por milhão de habitantes, em Espanha, 10 dias depois e, na Alemanha, 10 dias depois, também.
E nos casos da Itália e da Espanha já se ultrapassou a fasquia dos mil casos por milhão de habitantes. Em Itália, 6 dias depois e em Espanha, em apenas 4 dias, após se atingirem os 500 casos por milhão de habitantes. A expansão escalou de forma explosiva e é isso que todos os outros países pretendem evitar, com medidas férreas de isolamento social.
No caso de Portugal, atingimos o triplo da incidência (para 300 casos por 1 milhão de habitantes) cinco dias depois de chegar à fasquia dos 100/milhão habitantes, ou seja no dia 25 de março. Seguindo a linha do tempo dos outros países desta amostra é provável, na hipótese mais adversa, que passemos para 500 infetados por milhão de habitantes até 1 de abril e, depois, para mil infetados/por milhão de habitantes, até ao dia 7 do mesmo mês. A menos que as medidas de confinamento social definidas no estado de emergência nacional consigam, entretanto, mitigar a progressão exponencial do vírus e atrasar o avolumar de casos.
A evolução da Coreia do Sul é, nesta matéria, particularmente diferente. Apesar de ter que lidar com o vírus já há cerca de 10 semanas, ainda não atingiu a fasquia dos 300 casos por milhão de habitantes, comprovando-se a excelência da sua estratégia na contenção do COVID 19. Em relação à China, o cordão sanitário imposto na província de Hubei,logo nas primeiras semanas do surto, mostrou o seu elevado grau de eficácia. O COVID 19 não teve expressão no resto da China Continental e o número de casos e de mortos foi contido em poucas semanas.
Não deixa de ser surpreendente – e até agora sem explicações consistentes – a grande diferença nas taxas de letalidade entre os países em apreço. A Itália lidera este ranking terrível, com cerca de 11% de óbitos face ao número de infetados. A Espanha aproxima-se, com uma taxa próxima dos 8%. E os restantes países apresentam valores bastante mais baixos (entre os 6% e os 1,4%) com a Alemanha a destacar-se pela positiva com uma taxa de letalidade de apenas 0,67% (e já com 9 semanas de desenvolvimento do surto).
O caso da Alemanha é mesmo um benchmarking mundial, até agora, e convirá perceber as razões. Haverá várias, mas registo como principais as seguintes: a) a realização massiva de testes (a Alemanha realizou já cerca de 4 mil testes por milhão de habitantes, contra 625 apenas, em Espanha) “descobre” mais infetados, assintomáticos ou com baixo nível de morbilidade. Isso resulta numa queda direta da taxa de letalidade bruta; b) a idade média dos infetados na Alemanha é de apenas 47 anos e só 20% têm mais de 60 anos; c) apenas 10% da população alemã entre 30 e 50 anos vive com os pais, quando em Itália, por exemplo, essa taxa é de 20%.
Portugal apresenta aqui um excelente resultado, que devemos considerar provisório, naturalmente: 1,8% de taxa de letalidade, ao nível da Coreia do Sul, e a terceira melhor no contexto dos países que selecionamos. Isso fica a dever-se, essencialmente, ao facto da estrutura etária dos nossos infetados ser tendencialmente das mais jovens de todos os países em comparação: ao dia de hoje (27 de março) as faixas etárias entre os 30 e os 60 anos representam mais de 53% dos infetados e os que têm mais de 70 anos são apenas 18,7% dos casos registados, pese embora se revelem tendências de subida nos últimos dias. Isto impacta diretamente na mortalidade, porque os óbitos concentram-se nos doentes mais idosos (80% dos nossos óbitos são de pessoas com mais de 70 anos e cerca de 60% com mais de 80 anos). Em Itália, por exemplo, as faixas etárias com mais de 60 anos representam cerca de 60% do total de infetados.
A propensão para termos em Portugal casos com comorbilidades associadas ao novo coronavírus tem sido, assim, substancialmente mais baixa, o que explica a baixa mortalidade, o número baixo de doentes internados (cerca de 8% dos casos no dia 27 de março) e o valor ainda mais baixo dos doentes infetados que necessitam de cuidados intensivos (apenas 1,8% no mesmo dia). Não acreditamos que estas proporções se mantenham por muito mais tempo, porque receio bem que as notícias que nos chegarão dos lares e dos cuidados continuados façam explodir o número de idosos infetados no curto prazo e, consequentemente, o número de mortos. Está na hora (e já vamos tarde) de concentrar todos os esforços no rastreio de todas essas estruturas de acolhimento de pessoas idosas, testando para o COVID 19, todos os utentes e todos os profissionais, retirando desses locais os utentes que não estão infetados e confinando-os, temporariamente, em residências ou hotéis sob a responsabilidade do Estado. Ao mesmo tempo, deveriam ser mobilizadas equipas dos cuidados de saúde primários (médicos, enfermeiros, técnicos de análises e psicólogos) para acompanharem em permanência a situação clinica desses utentes. Os casos infetados deveriam permanecer nas mesmas instituições após desinfeção, salvo os casos avaliados como graves que deveriam ser encaminhados para internamento hospitalar direto (sem passar pelas urgências).Esta missão parece ser essencial se não quisermos ter uma nova Itália ou uma nova Espanha entre nós.
É claro que as evidências estatísticas escondem, por vezes, realidades diferentes: o subregisto de casos, a acontecer, diminui forçosamente a sua incidência, os registos de causa de morte poderão ter o coronavírus como diagnóstico principal ou secundário, não havendo neste contexto um rigor irrepreensível nestas classificações, a decisão dos cidadãos ficarem em casa, mesmo com sintomas, ou, diferentemente, contactarem de imediato os serviços de saúde, fazem toda a diferença para se ter uma contabilização rigorosa de casos infetados.
Uma palavra final de confiança nos nossos serviços públicos de saúde. Até agora têm tido os recursos suficientes e assim esperamos que continuem. Não se conhecem atropelos ou congestionamentos no acesso destes doentes, também porque as urgências hospitalares baixaram, entretanto, mais de 10 mil episódios por dia e as atividades programadas (consultas, exames, cirurgias, hospitais de dia, etc.) foram reduzidas aos casos inadiáveis. Mantenhamos a confiança e a serenidade, como tão bem exemplificou, recentemente, o Diretor de uma das mais prestigiadas unidades de infeciologia do país.
