O senhor da papelaria do meu bairro conserta relógios. Há 12 anos que o conheço sem conhecer, entrando-lhe pela papelaria adentro aqui ou ali. Para comprar tabaco, quando fumava. Para comprar um jornal ou uma revista. Para comprar saquetas de bonecos e de autocolantes, quando troquei o tabaco por dois filhos. Para fazer o Euromilhões, a pedido da minha mulher, que acredita mais na sorte do que eu (olho para aqueles €2,5 que desembolso como um pequeno preço a pagar pela oportunidade de me fazer sonhar durante uns dias: eu sei que não vou ganhar, sei mesmo, mas e se?…). A minha maior interação com ele passa por um bom dia ou boa tarde, dependendo da hora, são estes autocolantes, por favor, aqui tem, e este é seu, obrigado, até à próxima.
Nunca lhe perguntei o nome, mas presumo que se chame Bento, como a papelaria. Ignoro se será nome próprio ou apelido. Também se pode dar o caso de ter comprado a papelaria a um qualquer Bento e tenha decidido não lhe mudar o nome, por conveniências do marketing (“Os clientes já conhecem o nome, para quê mudar?”). Mas prefiro pensar que o senhor se chama mesmo Bento, para me dar a ilusão de julgar que sei alguma coisa sobre ele.
Por estes dias interessantes que vamos vivendo, a papelaria Bento é o único coração ainda pulsante do bairro. Todas as artérias aqui vão dar, convergindo gente das redondezas mais e menos próximas, a maioria em busca de raspadinhas e desse outro bem essencial que é o tabaco (sim, o tabaco mata, mas enquanto não mata dá vida). Não sei se ele se mantém aberto, arriscando-se a ser infetado pela tosse alheia ou por uma nota de cinco euros contaminada, devido a um qualquer espírito de missão. Não o conhecendo realmente, não posso saber se está no seu posto por altruísmo. Diria que não, que é apenas por necessidade, o que, convenhamos, não é coisa pouca. Seja pelo que for, aqui continua ele, o coração, a dar vida ao bairro.
As nossas rotinas, paralelas como carris, nunca mais longe mas nunca mais perto, só teve um momento diferente, quando há uns meses lhe levei um relógio que precisava de conserto, um velho Vostok soviético, lindo na sua simplicidade, como um relógio de criança. O mecanismo adiantava-se, o que o tornava ainda mais inútil do que um que se atrase. Antes um relógio que saboreie o tempo do que um com pressas – quem haveria de querer que o tempo passe depressa? O senhor Bento (será mesmo o nome dele?) não só arranjou o relógio como lhe acrescentou o ponteiro dos segundos. “O relógio em tempos teve ponteiro. O mecanismo estava lá. Deve ter parado de funcionar e tiraram.” Agradeci mais por simpatia do que pelo resultado. Afinal, qual a relevância do ponteiro dos segundos? Enfim, pensei eu, o senhor Bento deve ser desses que acham que cada segundo importa.
Hoje, enquanto via da minha janela clientes a entrarem e a saírem da papelaria, pensei quantos deles estariam preocupados em não infetar o senhor Bento. Porque, sejamos honestos, poucos são os que se preocupam em não infetar os outros. O medo torna-nos egoístas, ou revela-nos egoístas, o que não é bem igual, ainda que para todos os efeitos pouca diferença faça. E acrescentei outro pensamento: mesmo que a taxa de letalidade do vírus seja só de 2% (e em Itália parece que se aproxima dos 10%), e assumindo que 50% da população acabará por ficar infetada, isso significa que uma em cada cem pessoas que conheço, mal ou bem, com quem me cruzei ou cruzo no meu dia a dia, com quem rio e discuto no Facebook, vai morrer disto, nos próximos meses.
E agora olho para a papelaria Bento já sem saber se é um centro de vida ou um centro de morte. Será que aquela pessoa está infetada? E aquela? Um, dó, li, tá, quem vive e quem morrerá? Não sei, mas o meu relógio vai de certeza voltar a precisar de conserto. Espero que o senhor Bento se safe. Se é que o senhor se chama Bento.